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Florencia F.C. Shanahan[2] 

A interpretação lacaniana é discreta, é rara. É uma interpretação que deve ser um silêncio falante; não o silêncio da impotência, mas o que faz homenagem à cadeia significante. Um silêncio que deve conseguir transmitir ao analisante que não há outra linguagem da interpretação do que aquela que opera no inconsciente: é lalíngua, em uma palavra. Esta é a invenção de Lacan: cada elemento de lalíngua implica um traço de gozo […]. (Éric Laurent[3])

Imagem – Instagram: @resonancescience

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Dizê-lo todo: o não dito e o indizível

Quando começa, se é que acontece, uma análise se sustenta em uma regra fundamental: a de dizer tudo. “Diga tudo o que lhe venha à mente.” A impossibilidade que o analisante poderá encontrar ao final está aí desde o início, como um horizonte cujo coração ressoa no título do próximo congresso da NLS: O que não se pode dizer[4]. O subtítulo indica três dos nomes que Lacan lhe deu, em diferentes momentos de sua obra: desejo, fantasma, real. Esses termos se situam nos limites do dizer, não sendo articuláveis em si mesmos; só é possível captar algo deles no que efetivamente é articulado pela palavra.

Desde cedo, Lacan se refere ao silêncio em seu seminário ao falar da técnica Zen: “O mestre interrompe o silêncio com qualquer coisa, um sarcasmo, um chute”[5]. Afirma assim mesmo em seu escrito “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”:Sem dúvida, temos que dar ouvidos ao não dito que jaz nos furos do discurso, mas isso não é para ser ouvido como pancadas desferidas atrás do muro. Pois – para não mais nos ocuparmos, como se gabam alguns, senão desses ruídos – deve-se convir que não estamos situados nas condições mais propícias para lhes decifrar o sentido: como, sem a audácia de compreendê-lo, traduzir aquilo que em si não é linguagem?[6]

Assim, já poderíamos então dizer que Lacan propunha uma distinção entre o não dito e o indizível. A questão da qual se trata não é somente a das “palavras para dizê-lo”, mas a do objeto que dirige o querer-dizer sem que o sujeito o saiba. Trata-se do que “não é por si mesmo linguagem”, ou seja, o que mais tarde se tornará a consistência lógica alojada na pulsação temporal do inconsciente, o objeto a.

A boca e a voz

Uma vinheta clínica tenta ilustrar algumas das formas nas quais o silêncio se apresentou e foi utilizado no percurso de um sujeito que chegou à análise com um excesso de sofrimento, tanto em seus laços com os outros como em seu corpo.

Sua relação com a linguagem era de uma precisão afiada, quase poética. O silêncio lhe resultava insuportável. Em seus papéis sociais e profissionais media suas palavras e, ao mesmo tempo, frequentemente, lamentava-se de “haver falado demais”. Desde o início se queixava de sua relação com a comida.

Em uma sessão na qual havia finalmente conseguido dizer quão difícil era para ela o silêncio da analista, recorda uma situação no Ensino Médio na escola, na qual, tendo que ler em voz alta, comete um erro e é tomada em seu corpo (“seu rosto ficou vermelho”) e envolvida pelo silêncio da sala. Tal silêncio era “ensurdecedor”. A analista corta a sessão.

Outra lembrança, mais antiga, emerge. Em seus primeiros anos de escola, quando criança, levanta a mão excitada diante da pergunta de sua professora e, ao responder, dá uma resposta equivocada. Todos riem. Sente-se estúpida e pensa “tomara que a terra me trague”. A analista lhe devolve este significante e lhe indica a saída.

Começa a reconhecer até que ponto havia dedicado toda sua vida a tentar encontrar a palavra exata, a palavra correta para tudo (tendo inclusive feito dessa resposta, sua profissão), uma construção para tratar a angústia silenciosa que o não saber lhe provocava.

O silêncio da analista, que até aí havia alimentado a suposição transferencial de saber, toma outro estatuto quando, depois de um sonho em que sua mãe estava lhe dando de mamar, associa – não sem ficar corada e descrever uma sensação de vergonha – que na adolescência costumava roubar comida que sua mãe guardava e a comia sozinha, escondida em seu armário.

A constelação da união dos pais e sua entrada no mundo incluíam uma espécie de silêncio cifrado. Mais precisamente, a concepção de um filho, prévia ao casamento, havia sido objeto de um imperativo: “nunca falar disso”. A analista sinaliza: “fazem você comer suas palavras”. Ela responde: “o que eu não posso suportar é meu próprio silêncio […] por isso falo muito e como demais […]”.

Para esse sujeito, o saber havia adquirido o valor daquilo que podia fechar a boca do Outro. Encher a boca do outro e, ao mesmo tempo, a própria, se revela como uma modalidade de gozo que começa a ser tocada pelo trabalho analítico.

Na junta onde a hiância entre necessidade e demanda dá lugar ao desejo, furando o saber e tornando-o incompleto, a pergunta pelo que não se pode dizer se abre. Aí onde as vertentes oral e invocante do objeto a constituem o circuito da satisfação pulsional.

Então…

Em um texto já clássico e seguindo o último ensino de Lacan, Jacques-Alain Miller propõe que a função que corresponde ao analista (quando opera) é um movimento duplo que contraria tanto o silêncio da pulsão como o blá-blá-blá do inconsciente.[7]

O silêncio do analista pode ser concebido como a caixa de ressonância sem a qual esta operação não pode se dar. Aloja-se nesse gap onde o significante falha em ocultar que o “querer-dizer” é de fato um “querer-gozar’[8], e impulsiona a elucubração sustentada pelo artifício do sujeito suposto saber em direção aos confins do fora de sentido. Confins onde a raiz corporal do gozo itera a marca[9] do sempre traumático e insensato encontro entre a linguagem e a substância vivente, que é nosso corpo.

Encarnar o objeto causa de desejo para um analisante implica que o analista terá se despojado, ele mesmo, não apenas das miragens do imaginário (em especial o Eu Ideal e seu gozo narcisista, que bisbilhota através das máscaras da incansável preocupação e cuidados pelo próximo), mas também – e é por isso que sua ação não se reduz à terapêutica – irá contra o dormir, a infinitização e a sugestão que o ronronar da palavra induz.

No que diz respeito ao simbólico e seus poderes (particularmente o Pai e seu principal correlato, o Ideal do Eu), um analista terá acedido ao ponto em que lhe é possível “prescindir, com a condição de servir-se dele”[10].

Poderíamos dizer que a operação analítica, seu impacto no real por meio do simbólico, inclui o silêncio em seu centro, através da noção de desejo do analista, definido por Lacan em termos de um “desejo impuro”[11]. Pierre Streliski referiu-se recentemente a esta definição: o desejo do analista é impuro porque

o desejo é sempre impuro, ele é a própria impureza, é o grão de areia que emperra a ordem simbólica, a maquinação feita pelo supereu para tudo congelar, tudo parar. Essa impureza na ordem do universo é a um só tempo uma necessidade para que esse mundo não seja completamente vão, cínico ou desesperado.[12]

Para concluir, uma nota pessoal relacionada com esse furo no saber que somente o “silêncio falante” pode fazer surgir, e a maneira contingente em que pode ressoar: o texto que mencionei foi também publicado em inglês sob o título “Interpretation in reverse”[13]; entretanto, em minha primeira leitura, na capa da edição em espanhol, eu havia encontrado, como letras dançantes que esperavam ser adotadas, uma orientação: Então, shhh![14]

Tradução: Daniela Araújo
Revisão: Elisa Alvarenga

[1] Trabalho apresentado nas III Jornadas Anuais do ICLO-NLS, O silêncio do psicanalista. Uma clínica do que não se pode dizer, em Dublim, 7 de junho de 2014. Publicado em inglês: From a Desire for Silence to a Silent Desire, Lacunae, v. 4, Issue 1, 2014.
[2] Psicanalista em Dublim. Membro da NLS e da AMP. AE em exercício (2019-2022). Vice-Presidente da ICLO Society da NLS.
[3]  LAURENT, É. Les objets de la passion. Accès, Bulletin de l’ACF-VLB, n. 5, p. 172, jun. 2013. Tradução livre.
Existe uma tradução anterior desse texto. Cf. LAURENT, É. Os objetos da paixão. In: ___. As paixões do ser. VII Jornada da EBP/Bahia. III Jornada do Instituto de Psicanálise da Bahia. Salvador: EBP/Bahia, 2000. p. 45-46.
[4] Cf. HOLVOET, D. Argumento do Congresso da NLS, Gante, 2014. Disponível em: <http://www.amp-nls.org/page/gb/173/argument>.
[5] LACAN, J. O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. (1953-1954) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1979. p. 9.
[6] LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: ___. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 308.
[7] MILLER, J.-A. La interpretación al revés. In: ___. ¡Entonces Shhh! Buenos Aires: Eolia, 1996. p. 7-13.
[8] BONNAUD, H. Da pontuação ao equívoco. PAPERS, n. 10, 2014. Disponível em: <http://www.congresamp2014.com/pt/Papers/Papers-010.pdf>.
[9] LACAN, J. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. (1969-1970) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
[10] LACAN, J. O seminário, livro 23: O sinthoma. (1975-1976) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
[11] Cf. LACAN, J. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988.
[12] STRELISKI, P. Nota sobre o desejo do analista. PAPERS, n. 10, p. 6-8, 2014.
[13] MILLER. La interpretación al revés. Op. cit.
[14] MILLER. La interpretación al revés. Op. cit.