Tempo de leitura: 14 minutos

Sérgio de Castro[2]

O Encontro Brasileiro se chamará, como sabemos, O feminino infamiliar, dizer o indizível. Posso lembrar-lhes que o neologismo infamiliar, que acolhemos em nosso título, é a proposta de tradução de Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares para a forma substantiva Das Unheimliche, título do célebre ensaio de Freud, de 1919. A dificuldade da tradução de tal palavra alemã para uma língua latina (mas não só) é já por demais conhecida, especialmente por ela conjugar o termo heimliche, o doméstico, o familiar, o íntimo, com seu oposto, o não familiar. É a esse tipo de pesquisa que Freud se dedica na abertura de seu artigo ao afirmar: “O que há de mais interessante para nós […] é o fato de que a palavrinha ‘familiar’ [heimlich], entre as diversas nuances no seu significado, também aponta coincidente com seu oposto ‘infamiliar’ [unheimlich]”[3]. Podemos já adiantar, sem nos determos na questão por agora, que Freud situa, em tal palavra, algo do que Lacan, também num neologismo, chamará de êxtimo: o íntimo que surge no exterior do falasser de forma angustiante, no caso que nos interessa agora, e que não se reconhece enquanto tal por ocasião de suas aparições ou efeitos sobre esse falasser.

Para nos atermos apenas a referências recentes de autores do Campo Freudiano a propósito de traduções de tal termo, temos a de Miquel Bassols que, em sua Conferência apresentada no VIII Enapol, em 2017, e publicada em Opção Lacaniana n. 79, enunciou que “Se tivéssemos que transpor literalmente o termo para nossa língua [o espanhol, no caso, mas com os mesmos impasses e dificuldades que o português], então melhor seria falar de ‘O in-familiar’, entendendo o ‘in’ como a negação do familiar, mas também como interior a ele, o mais próprio, o mais êxtimo”[4]. Bassols também ressalta ali que essa partícula de negação do alemão, UN – do UNheimliche, é a mesma presente em UNbewusste, que designa o Inconsciente. A esse propósito, temos também na recém-publicada resposta de Lacan a Marcel Ritter[5], a observação feita de que o UN presente em algumas palavras alemãs – como unheimlich, unbewusste (inconsciente), assim como o Unerkant, o não reconhecido – se liga e remete a um limite, um limite do dizível. Bassols também observará que esse UN não convoca a uma negação correlacional e simétrica como um antônimo poderia fazê-lo: abre-se aqui uma perspectiva onde o UN remeterá ao ex – presente em extimidade, por exemplo –, tanto quanto ao UN de ‘Y a de l’UN‘ lacaniano.

Numa outra referência à tradução, agora para o francês, de tal termo – que também, como o português, apresenta sérias dificuldades – no Editorial do número 102 da revista La Cause du Désir, Fabián Fajnwaks acolhe a sugestão feita pelo filósofo Jean-Luc Nancy, em entrevista publicada nesse número da revista assim como no número 80 da revista Correio, sugerindo que a tradução francesa mais conhecida do Unheimliche por inquiétante etrangeté – inquietante estranheza – seria inadequada e que inquiétante familiarité – inquietante familiaridade – seria melhor e mais próxima do sentido em alemão. Freud dirá: “[…] o infamiliar é uma espécie do que é aterrorizante, que remete ao velho conhecido, há muito íntimo.”[6] Perdem-se e deixam-se escapar na tradução francesa – assim como na inglesa, na brasileira e na de outras línguas – o caráter e a estrutura êxtima da questão ao articular o íntimo e o exterior, como no alemão ele se apresenta, o que aliás suscitou o interesse de Freud por tal fenômeno. A escolha, portanto, de tal termo, infamiliar, tradução proposta pela edição das Obras Incompletas de Freud, da Editora Autêntica – sim, estranha nela mesma e que preserva esse algo de intraduzível –, encontra-se fundamentada e se justifica a partir desses longos debates sobre como dizê-lo, seja no próprio alemão, como as conjecturas linguísticas desenvolvidas e apresentadas por Freud em seu ensaio indicam, seja em outras línguas, nas quais tal termo se oferece em sua própria intraduzibilidade. Enfim, muito infamiliar isso tudo.

No início de seu ensaio, Freud indica a angústia como própria a tais acontecimentos, e ao final os indexará ao recalcado e a seu retorno. Tais acontecimentos, que em si mesmos poderão não ser infamiliares, mas em determinados contextos o serão, poderão ser sumária e parcialmente apresentados como: personagens fantásticos ou mortos-vivos, em que, inclusive, a figura do duplo poderia ser tomada como a negação da finitude e dos limites do eu; a indistinção entre animado e inanimado, quando um objeto poderia falar; a quebra da unidade do corpo ou do mundo, quando membros corporais ou fragmentos da realidade poderiam ganhar autonomia e se desarticularem de um conjunto mais ou menos coerente; fenômenos de repetição que, se são cruciais como elementos clínicos/conceituais na psicanálise, podem, também em circunstâncias específicas, surgir como infamiliares, como quando, no relato interessantíssimo presente no ensaio, olhares femininos que convocavam, para o homem Freud, a dimensão do gozo e da fantasia, o angustiam nas ruas de uma pequena cidade italiana e que retomarei mais adiante. Creio podermos dizer que tais fenômenos serão sempre mais ou menos inesperados, com algo de invasivo em seu caráter de surpresa e angústia, e em maior ou menor grau, rompendo ou forçando parâmetros simbólicos/imaginários previamente delimitados e supostamente estáveis. Será por tais vias que nos perguntaremos, aqui, se certa aproximação com o gozo feminino, tal como proposto no avançado de seu ensino por Lacan, não poderia ser interessante.

Ora – e a partir daqui proponho já uma questão –, cabe perguntar-nos se também, ao situarmos e nos aproximarmos do fenômeno do infamiliar em sua atualidade, o retorno do recalcado, enfatizado por Freud como próprio desse fenômeno, não deverá ser pensado numa conjuntura em que o Nome-do-Pai, como constatamos em nossa orientação, como agente do recalcamento, não incidirá mais de forma tão determinante sobre o falasser. Ou seja, entre a angústia e, para o Freud de então, seu correlato, o retorno do recalcado, apresentados ao longo do ensaio como elementos próprios, ainda que não exclusivos, do sentimento de infamiliaridade, parece ser mais interessante nos aproximarmos da questão pela via da angústia, tal como a entendemos e situamos a partir do seminário 10, A angústia, de Jacques Lacan. Isso nos abriria a possibilidade de pensarmos, por exemplo, uma miríade de fenômenos contemporâneos, infamiliares e não articulados de forma hierarquizada, como as redes sociais, recursos médico-tecnológicos de modificação dos corpos, o Big Data com seu potencial de controle e manipulação de nossas vidas etc. Eventos e funcionamento em que a angústia e o infamiliar se tocam, num cenário onde aprendemos a localizar o objeto a no zênite social.

Mas o XXIII Encontro Brasileiro pretende cotejar, articular, distinguir, clínica e epistemicamente, o feminino – ou o gozo feminino, esse conjunto aberto sem uma delimitação precisa que, adianto, não será uma prerrogativa exclusiva das mulheres, do infamiliar freudiano, tal qual o artigo de Freud, apostamos, nos permite fazer. O alcance e o resultado de tal cotejamento poderão nos surpreender.

Sabemos que no seminário 20, Mais, ainda, Lacan avança de forma decisiva em suas elaborações sobre o feminino. Se, no início de seu ensino, uma posição feminina era definida a partir de sua relação com o falo, como vemos, por exemplo, em “A significação do falo”, onde ter ou ser o falo aparecia como suficiente para distinguir uma posição masculina de uma feminina, desde o momento em que a questão é abordada a partir do gozo, como no seminário citado, o falo deixa de ser um operador suficiente. Situar uma posição feminina apenas articulada ao falo, e, portanto, a uma operação de recalcamento, como o vemos, a partir da fórmula da metáfora paterna, não nos parece uma via suficiente para o que visamos no Encontro Brasileiro. Será preciso ir mais além, como o fará Lacan. Noutros termos, a operação agenciada pelo Nome-do-Pai, como observamos na fórmula da metáfora paterna, sustentáculo do simbólico a partir da metaforização do desejo da mãe, que produziria como resultado a significação como fálica, não apresentará, para o Lacan daquele momento, restos. Ou, se preferirmos, o objeto não aparece ali. Tais momentos iniciais de Lacan serão, segundo Miller, momentos de grande otimismo, uma vez que o simbólico, em tese, seria capaz de recobrir todo o imaginário e significantizar toda a pulsão.

Antes de passarmos ao seminário 20, no entanto, elegemos um momento intermediário entre “A significação do falo” e o Mais, ainda, para nos aproximarmos da questão. O seminário 10, A angústia, parece nos servir aqui. Nele, como pretenderei indicar, o esforço de Lacan será cernir algo da angústia por uma via que, por se mostrar insuficiente, não será a do significante e nem a do retorno do recalcado. Como sabemos, será em tal seminário que Lacan apresentará, pela primeira vez, elaborações sobre o que chamará então de objeto a. Tal objeto, ainda que escrito com o a do objeto especular, se distinguirá dele justamente por trazer problemas ao se tentar situá-lo apenas no estádio do espelho. E justamente por apresentar dificuldades em ser refletido no espelho, ele será também inapreensível pelo simbólico. Algo, portanto, ligado à angústia, que tocará o irrepresentável, já será cernido por Lacan no seminário 10. Por se revelar, então, não especularizável, ele se mostrará também um elemento heterogêneo à cadeia significante. Como sabemos, o caminho concebido até então por Lacan para o tratamento analítico seria a de promover a passagem, por uma via sublimatória, de termos e elementos situados no imaginário para o simbólico. Aqui, com a angústia, tal como a aborda Lacan, encontra-se um obstáculo tanto à sublimação, quanto à sua apreensão pela linguagem. Um resto, podemos dizê-lo assim, que, sem se confundir propriamente com a angústia, estará intimamente articulado a ela. Isso fará, segundo Miller, “com que a noção mesma de curar a angústia tenha algo de vão”[7]. O que não significa, acrescento, que o destino que ela virá a ter e o tratamento possível a se dar a ela não tenham um lugar crucial na experiência analítica.

Para Lacan, em tal seminário, a insuficiência de uma integral absorção fálica/significante da angústia produzirá efeitos importantes, podendo levar o sujeito “até o mais completo desarvoramento”[8]. Uma série de ‘aléns’, se eu puder falar assim, e onde se situará também o gozo feminino, se inicia aqui: um além do Édipo, um além do falo, um além do significante, um além do recalque etc. O passo que Lacan dará ali será situar essa angústia, que creio podermos chamar de lacaniana, para além dos quadros de uma angústia de castração ou, no que diz respeito ao feminino, além de uma privação do falo. Ou seja, mais além de uma angústia suscitada pela perda do objeto, tratar-se-á ali, no ponto de chegada de tal seminário, de uma angústia suscitada pela presença do objeto. A esse propósito, Jacques-Alain Miller comentará: “No seminário A angústia, Lacan nos apresenta […] a sexualidade feminina de uma maneira totalmente inédita, na medida em que […] até corrige Freud. O que começa nesse Seminário [a propósito da sexualidade feminina] só será percebido alguns anos mais tarde com o Seminário 20, Mais, ainda[9]. Parece que temos aqui, no entanto, um quiasma do qual várias direções distintas, às vezes enganosamente próximas, mas com termos comuns, se desprenderão, mais ou menos remetendo ao feminino ou ao gozo feminino. Empuxo à mulher, objeto a no zênite social, feminização do mundo. E por que não acrescentar, já que é o nosso tema, o infamiliar no que todos eles possam convocá-lo? A pergunta que apenas apresento aqui é se tais termos, todos indicando um além do Édipo e a insuficiência do falo em apreendê-los inteiramente, seriam suficientes para localizarem e, de certa forma, cernirem o feminino tal como, a partir de Mais, ainda, Lacan por fim o apresentará. Talvez não, pois se alguns, como o empuxo à mulher, remetem à estrutura, outros, como o próprio infamiliar, não deixam de se fazer presentes na fantasia.

O que me parece importante para nós hoje é que, com o franqueamento operado por Lacan no seminário A angústia, ao situar a angústia, inclusive como não conceitual, mais além de uma sustentação fálico-significante, ela será uma via privilegiada de acesso ao real. Para irmos ao seminário 10 num ponto que nos interessa, Lacan falará, na lição IV, de 5 de dezembro de 1962, de um objeto que Miller chamará e intitulará, ao estabelecer tal seminário, de objeto hoffmanniano, remetendo justamente ao autor E.T.A. Hoffmann. Esse será um dos subtítulos escolhidos por Miller para a referida lição. E Lacan circunscreve esse objeto hoffmanniano com tal precisão que podemos dizer que há ali uma primeira nomeação do famoso objeto a, ou um seu imediato antecessor. Nesse momento, ao comentar o conto “O Homem da Areia”, de E.T.A. Hoffmann, Lacan afirmará que “A boneca espreitada pelo herói do conto por trás da janela do feiticeiro, […] é propriamente esta imagem, i(a), na operação de complementá-la com aquilo que, na própria forma do conto, é absolutamente distinto dela, ou seja, o olho”[10]. Ao situar a boneca/mulher Olímpia num plano especular, i(a), Lacan destacará o olho numa elaboração em que olho e olhar ainda não se distinguiram, mas para dar a esse olho/objeto o estatuto do não especularizável. Lacan dirá ali: “O homem encontra sua casa (Heim) num ponto situado no Outro para além da imagem de que somos feitos”[11]. Tal passagem, de extrema importância, permitirá que Lacan, numa ênfase e numa leitura do conto que não coincidirá inteiramente com a de Freud, coloque no objeto olho “todo o fio narrativo do conto”[12]. É interessante, portanto, lermos o conto a partir da indicação de Lacan: o olho e o olhar como fios condutores da narrativa. É curioso também que Lacan não deixa de criticar Freud dizendo que “é significativo de não sei que constrangimento, sem dúvida ligado ao fato de que essa era a primeira vez que o arado entrava nessa linha de revelação da estrutura subjetiva, que Freud nos dê essa referência de forma tão desordenada”[13].

Lacan, então, a partir da circunscrição do objeto olho, “ordenará” e organizará a leitura que Freud faz do conto. A angústia, prossegue Lacan, “está ligada a tudo o que pode aparecer no lugar do -phi […] Esse é o fenômeno do Unheichlichkeit”[14]. Algo, portanto, que aparecerá no campo do Outro, “sob a forma do objeto que sou, na medida em que ele me exila de minha subjetividade”[15]. Aqui temos, portanto, a apresentação de antecedentes imediatos do objeto a já fora do campo especular. Tal distinção não será então de pequeno alcance. Ainda que ele, tal objeto, surja a partir de um -phi, não se deixará apreender inteiramente como um produto da castração, mantendo, então, além de algo não especularizável, algo de não simbolizável. E prossegue Lacan: “não se trata da perda do objeto, mas da presença disto: de que os objetos não faltam”[16]. Isso tudo para indicar, como o afirmará Miller, que Lacan, nesse seminário, aumenta a lista de objetos, acrescentando então o olhar, ao final de tal seminário e no seminário seguinte, e a voz, aos objetos freudianos: fezes, seio e falo. É aqui que vemos surgir na boneca Olímpia o objeto a, na forma de objeto olho. Para seguirmos Miller, em seu curso Silet, ele dirá que “Ao olhar do Outro está sempre ligada uma estranheza – ele traz consigo, nutre, fenômenos de Unheimilchkeit, estranheza inquietante”[17]; uma vez que, instalado na falta no Outro, ele evidenciará a posição de objeto ocupada ali pelo próprio sujeito, o que no conto citado, e referência para nós hoje, é amplamente demonstrado!

No argumento já disponível no site do XXIII Encontro Brasileiro, Marcela Antelo e Iordan Gurgel, coordenadores da Comissão Científica, localizam no ensaio de Freud uma passagem em que o objeto olhar insinua-se a Freud num fenômeno infamiliar. Dirá Freud: “Em certa ocasião, ao andar pelas ruas desconhecidas de uma pequena cidade italiana, cheguei a um lugar que não me deixou em dúvida quanto ao seu caráter.” Freud refere-se aqui, de forma alusiva, a uma rua com casas de prostituição. “Havia apenas”, prossegue Freud, “mulheres maquiadas nas janelas das pequenas casas, e apressei-me em virar no cruzamento seguinte para abandonar aquela rua. Mas depois de vagar sem orientação por algum tempo, encontrei-me novamente ali, ‘onde começava a chamar a atenção’, e meu apressado afastamento só teve o resultado de que, por um novo rodeio, caí pela terceira vez no mesmo local.”[18] Temos aqui, com o “começava a chamar a atenção”, a emergência do objeto olhar se manifestando. Tudo isso num cenário onde Freud, rodeado por prostitutas, ao chamar a atenção dessas mulheres, se viu sendo visto… vendo. Surge daí uma resposta fantasmática que coloca em jogo um real que retorna sempre ao mesmo lugar, como tela ao infamiliar do gozo feminino.

Tais elaborações que apresentei acima sobre o esforço de Lacan, no seminário 10, para circunscrever o gozo num objeto que chamará de a, como termo heterogêneo e exceção dada ao gozo em relação à linguagem, dez anos depois, no seminário 20, Mais, ainda, serão formuladas distintamente. Tal regime de exceção, que tentava elementarizar um real, será estendido e tocará, sob a designação de “não-todo fálico”, os próprios fundamentos da linguagem. A própria ultrapassagem lacaniana de uma linguística saussuriana, com suas elaborações sobre lalangue feitas ali, evidencia a direção que Lacan dava à questão. Jacques-Alain Miller chamará a atenção para a escrita do J maiúsculo proposta ali por Lacan, que o levará a pensar na estrutura do nó, mais que na estrutura da linguagem. Miller falará, em Coisas de fineza, na lição de 14 de janeiro de 2009, que “com o J (jota maiúsculo) a coisa explodiu”[19].

Perguntaria aqui se a tese desenvolvida por Miller em sua “Teoria de Turim”, relativa à feminização do mundo, não seria compatível com tais elaborações do seminário 20? A disseminação a que assistimos, de um gozo não-todo fálico incidindo sobre as modalidades do laço social contemporâneas, poderá ser pensada a partir daí, parece-me. Aqui também podemos apontar para nos referirmos a debates e questões atuais, ao não binarismo do regime de gozo a que chega Lacan. Como não se trata, com a fórmula lacaniana “para não todo X, phi de X”, de complementaridade de gozos ou de uma simples oposição simétrica. Não estamos mais regidos pelo binarismo do 1/0, presença/ausência ou falo/castração. Como vimos, tal assimetria já se coloca quando Lacan indica o caráter não especular do objeto a. A seguir, com a extensão e o alcance que tais elaborações mostram ter, o afastamento de uma lógica binária só faz se acentuar. Tal gozo, não todo fálico, será generalizado por Lacan, o que permite a Miller dizer: “Pelo viés do gozo feminino digamos que Lacan percebeu o que era o regime do gozo como tal”[20].

Será interessante notar que na tábua da sexuação apresentada no seminário 20, o objeto a aparece do lado feminino, onde não existe o ponto de exceção que articula uma lógica fálico-masculina. Isso nos permitiria interrogar se, com a afirmação lacaniana enfatizada por Miller quanto ao objeto a estar hoje no zênite social, não se poderia também constatar algo de uma feminização do mundo que implicaria na prevalência de um gozo múltiplo e constelar?

No entanto, e para encerrar o que eu gostaria que fosse apenas uma abertura que lançasse questões, aponto para distinções que me parecem importantes serem desenvolvidas com o tempo que temos até o Encontro. Para colocá-las de forma sumária, eu as formularia assim: a lógica feminina do não-todo prescindiria inteiramente de uma referência ao falo? O gozo dito “não-todo-fálico” já não convocaria o falo como um ponto a partir do qual outras delimitações poderão ser feitas? É certo que o infamiliar que nos interessa no Encontro apresenta-se, como creio ter indicado nesta formulação do tema, num além do falo. Mas uma referência ao falo, ainda que para indicar algo além dele, não nos permitiria estabelecer termos distintivos entre o empuxo à mulher, o objeto a no zênite social, a feminização do mundo, ou uma perspectiva do feminino que não fosse apenas superegoica?

E, já no limite do campo de nossa investigação, talvez possamos nos perguntar também a que falo nos referimos aqui. Como indagou Éric Laurent em sua conferência no último Encontro Brasileiro, “A queda do falocentrismo”, ao retorno de um falo não negativizado, como líderes de tendências políticas de extrema-direita hoje, mundo afora, insistem em tentar afirmar? Parece que temos aqui elementos para pensar tais tendências políticas como um esforço, no campo da comédia (se não fosse trágico), de tentar reafirmar uma supremacia de um falo que, por não se equacionar majoritariamente no campo simbólico, aparecerá na forma do cassetete e congêneres… O que vemos aqui, muito mais do que a afirmação de uma heterossexualidade, será a tentativa de impor uma heteronormatividade que só se sustentaria com o recurso ao arbítrio e à força bruta. Ou haveria hoje, também do lado macho da tábua de sexuação, a possibilidade de uma posição menos referida nesse falo que se apresenta como não negativizado, podendo assim sustentar uma posição heterossexual, sem que o feminino resvale para uma posição apenas superegoica?

São questões possíveis a partir do tema de nosso Encontro que, portanto, nos abrem as portas para o mundo e para a contemporaneidade!


[1] A presente intervenção abriu o Seminário preparatório do XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano: O feminino infamiliar. Dizer o indizível, realizado on-line no dia 13 de maio de 2020.
[2] Psicanalista em Belo Horizonte. Membro da AMP e da EBP. Atualmente é Diretor Geral da EBP. Presidente do XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano.
[3] FREUD, S. O infamiliar. [Das Unheimliche] Trad. Ernani Chaves, Pedro Heliodoro Tavares [O Homem da Areia; tradução Romero Freitas]. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. p. 45. (Obras Incompletas de Sigmund Freud, 8)
[4] BASSOLS, M. A língua familiar. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 79, p. 39, jul. 2018.
[5] LACAN, J. L’ombilic du rêve est un trou. Jacques Lacan répond à une question de Marcel Ritter. La Cause du Désir, Paris, n. 102, p. 35-43, 2019.
[6] FREUD. O infamiliar. Op. cit., p. 33.
[7] MILLER, J.-A. Introdução à leitura e referências do Seminário 10. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 43, p. 17, maio 2005.
[8] MILLER, J.-A. Introdução à leitura e referências do Seminário 10. Op. cit., p. 17.
[9] MILLER, J.-A. Introdução à leitura e referências do Seminário 10. Op. cit., p. 25.
[10] LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia. (1962-1963) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 58.
[11] LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia. Op. cit., p. 58.
[12] LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia. Op. cit., p. 58.
[13] LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia. Op. cit., p. 58.
[14] LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia.,Op. cit., p. 57.
[15] LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia. Op. cit., p. 59.
[16] LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia. Op. cit., p. 64.
[17] MILLER, J.-A. Silet: os paradoxos da pulsão, de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 290.
[18] Nessa passagem, optamos pela tradução de Paulo César de Souza. Cf. FREUD, S. História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros temas (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 354. (Obras completas, 14)
[19] MILLER, J.-A. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan: entre desejo e gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011. p. 108.
[20] MILLER, J.-A. O ser e o Um. Lição de 2 de março de 2011. Inédito.