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Antônio Teixeira, Isabel do Rêgo Barros Duarte, Lucíola Freitas de Macêdo, Luis Francisco Camargo, Veridiana Marucio

 

Se o gênero não é um conceito psicanalítico, então por que nos debruçarmos sobre esse tema? Se consideramos a atual expansão das questões de gênero – representadas pelos “estudos de gênero” – como um sintoma de nossa época, ou seja, como um modo de lidar com o impossível da identidade e da relação sexual, cabe à psicanálise interpretá-lo.

Robert Stoller, psicanalista e psiquiatra norte-americano ligado à Escola kleiniana e à Psicologia do Ego de Hartmann, foi quem inicialmente propôs o conceito de gênero. Apesar de abordar o gênero de uma perspectiva médico-patológica, como constatamos em seu livro Sex and Gender [1], recorre a esse termo para diferenciá-lo radicalmente do sexo biológico.

A difusão cultural desta cisão, entretanto, deve-se às autoras ligadas aos movimentos feministas, tais como Gayle Rubin, em seu clássico Tráfico de mulheres[2]. Esta autora propõe uma cisão definitiva entre o sexo biológico e o gênero sexual, a partir de um ponto em comum com a psicanálise – de que a escolha sexual não decorre de um programa biológico.

A psicanálise, por sua vez, segue por uma direção diferente das teorias de gênero – que se popularizam e evoluem para uma nova taxonomia representada pela sigla em constante mutação LGBTQIAP+.

Apesar dos estudos de gênero comportarem diferentes visões sobre o tema, podemos dizer que se trata da ideia geral de que o gênero seria um núcleo duro que enrijece o ser, uma imposição aprisionadora da qual devemos fugir se queremos retomar o controle do corpo e da sexualidade[3].

Diferentemente, a psicanálise aproximaria o gênero da posição do sujeito, que busca dar conta da relação com o corpo próprio e com o Outro, sem nunca se fixar totalmente: “um sopro impalpável que anima [o ser] de maneira inesperada e precária”[4].

Vemos que, nesse caminho, não podemos deixar de levar em conta o regime de gozo próprio ao ser falante. Nesse sentido, Freud é absolutamente original e atual ao afirmar que não há uma ligação direta entre a pulsão e o seu objeto, demonstrando as consequências do impacto da linguagem sobre o corpo, e do psíquico sobre o somático.

Para Lacan, a realidade é abordada com os aparelhos do gozo. Heteros e homos não correspondem estritamente à repartição sexual ou às escolhas de objeto, e masculino/ feminino são semblantes. Se a realidade do inconsciente é sexual, isso se dá pela via do gozo, que itera e irá se alojar no sinthoma.

Heteros corresponde ao nãotoda, ao que é outra para si mesma; homos ao que é semelhante a si, qualquer que seja o próprio sexo ou a escolha de objeto em questão. Homos e heteros não correspondem à identidade, mas a modos de amar e de gozar, e mais…  ainda, a modalidades do dizer[5]. As formulações lacanianas não se prestam a totalizações, deslocalizando identidades e categorias.

Interessa-nos, portanto, interpretar, mas também aprender com esta época em que o muro que separava arbitrariamente os gêneros parece ruir, e o gênero fluido joga com a indeterminação: “passamos da crença em uma necessidade do gênero para a era da contingência dos gêneros”[6].

A proliferação das letras que compõem a sigla dos gêneros (LGBTQIAP+) traz a particularidade de favorecer a uma maior fluidez quanto aos semblantes dos quais cada sujeito poderá lançar mão para se virar com seu corpo e com a inexistência da relação sexual.  LGBTQIAP+ e quantas letras ainda irão se somar à sigla em sua tentativa de dar conta deste impossível.

A experiência da psicanálise conduz o falasser a uma escolha entre o excesso de possibilidades de identificações simbólicas e a certeza de seu modo de gozar sozinho, a solidão do sinthoma. Não mais a solidão da fantasia, mas o motor que anima o desejo de saber inconsciente, quando o analisante consente, a partir do atravessamento da fantasia, a que o objeto opere como causa.

Nesse sentido, o analista é aquele que se autoriza de si mesmo, como diz Lacan, ato solitário que se testemunha diante de outras solidões. Autorizar-se de si mesmo é autorizar-se desta perda radical, o objeto a, que encapsulamos com o falo nas nossas fantasias, ofertando-o ao Outro. A questão é que o objeto a não é do Outro, nem mesmo é do sujeito, sendo ao mesmo tempo abismo e margem de liberdade.

Essa é a liberdade à qual uma análise pode conduzir. Não se trata de uma liberdade coletiva reivindicada revolucionariamente a um Outro a que se supõe detê-la – reivindicação que, sem dúvida, tem seu lugar político e social, mas não dá conta da complexidade em jogo quanto a relação do sujeito com seu sexo. De outro modo, trata-se da liberdade gerada pela constatação de que não importa o número de letras presentes na sigla, toda taxonomia será incompleta e o modo de gozo, a satisfação da pulsão sexual própria de cada falasser, será sempre inclassificável, tal como Lacan o demonstra por meio da teoria geral dos conjuntos[7]  Jacques-Alain Miller o indica, através do Paradoxo de Russel[8].

 Nessa perspectiva, orientamo-nos pelo que a psicanálise ensina sobre o não-todo do gozo feminino. Será a isto que Lacan aponta quando afirma que as mulheres analistas são as melhores, quando não são as piores? Justamente ao não-todo próprio ao lado feminino da tábua da sexuação, em sua proximidade ao abismo e ao mesmo tempo, a essa margem liberdade? É certo afirmar que não há analista que possa poupar-se à pergunta sobre o feminino em sua própria análise.

O que nos autoriza como psicanalistas a entrar no debate sobre o gênero é o fato de que sujeitos nos chegam todos os dias nos consultórios e nas instituições endereçando-nos, de diferentes maneiras, seus impasses em sua relação ao seu gênero. Cabe-nos então, por fim, interrogar: haverá lugar para a psicanálise na era dos inclassificáveis do gênero? É possível, no trabalho com os conceitos, articular gênero e infamiliar? De que maneira?

Por um lado, ao considerarmos o gênero como fazendo parte do amplo espectro do que se entende por identidade, isto é, dos significantes-mestres advindos do Outro, restringindo o espaço do sujeito como efeito da linguagem[9], diríamos que não haveria lugar para o infamiliar neste campo. É muitas vezes o que constatamos no discurso coletivo e ideológico sobre esse tema.

Por outro lado, se nos orientamos pelo último ensino de Lacan, que desloca o processo de identificação do Outro para Um-corpo[10], abrimos um caminho para uma articulação possível entre gênero e infamiliar. Segundo Brousse, “a única identidade que se sustenta, que tem consistência, é aquela que J.-A. Miller propõe chamar de identidade sintomal, que não é do sujeito, mas sim do Um- sozinho, do corpo do qual não podemos escapar, de seus furos, que a contingência dos significantes colocou em funcionamento nas experiências singulares de cada um (…). Este é o sentido da expressão de Lacan “identificar-se com seu sintoma”[11]. Será que o gênero, em confluência com a identidade, poderia ser pensado sob essa perspectiva?

Clotilde Leguil parece seguir este caminho, quando propõe o gênero como algo a que se chega em uma análise: “O gênero de um sujeito, no final de uma análise, remete ao que ele fez daquilo que se fez dele” [12]. Isso seria resultado não de um confronto com as normas sociais, mas de um confronto “com um “eu sou” que não está ali onde aquele que falava (o sujeito) esperava encontrá-lo”[13].  Haveria aí uma abertura para uma articulação entre gênero e infamiliar? Dizendo de outro modo, poderíamos afirmar que, quanto ao mais singular do modo de gozo, cada um seja queer à sua maneira? Ou terá o queer, uma vez subsumido aos ideais da cultura e absorvido por uma bandeira política, se normalizado ao ponto de perder a dimensão subversiva e rebelde a toda e qualquer universalização[14], que lhe havia sido outorgada no início deste século?

 

 


 
REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Gênero melancólico/identificação recusada. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, pp. 141-174.
BUTLER, Judith. Proibição, psicanálise e a produção da matriz heterossexual. In: Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, pp. 71-140.
FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013 (Tradução: Pedro Heliodoro Tavares).
LACAN, Jacques. O seminário, livro 19:…ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.
MILLER, Jacques-Alain. Casamento homossexual: esquecer a natureza. Opção lacaniana online, nova série. Ano 4, Nº 10, mar. 2013. Disponível em:
http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_10/Casamento_homossexual.pdf.

 


 
[1] Cf. Stoller, Robert. Sex and Gender: On the Development of Masculinity and Femininity. London: Hogarth Press, 1968.
[2] Rubin, Gayle (1975). O tráfico de mulheres. In: Políticas do sexo. São Paulo: UBU Editora, 2017.
[3] Leguil, Clotilde. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016, p. 40.
[4] Ibid., p. 40.
[5] Macêdo     , Lucíola Freitas. O que é o que é? Lacan XXI: Revista FAPOL Online, v.2, 2018. Disponível em:
http://www.lacan21.com/sitio/2018/10/22/o-que-e-o-que-e/?lang=pt-br. Recuperado em 30/01/2020.
[6] Leguil, Clotilde. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan, p. 60.
[7] Cf. Lacan, Jacques. O aturdito. In: _______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 448-497.
[8] Cf. Miller, Jacques-Alain. Estructura significante. In:_______. Conferencias Porteñas. Tomo 1. Desde Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2009, pp. 33-49.
[9] Brousse, Marie-Helene. A identidade, uma política, a identificação, um processo e a identidade um sintoma. Opção Lacaniana on line nova série, Ano 9,  número 25 e 26, março /julho de 2018, p.9. Disponível em:
http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_25/As_Identidades_uma_politica_a_identificacao.pdf. Recuperado em 29/02/2020.
[10] Idem.
[11] Idem.
[12] Leguil, Clotilde. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016, p. 90.
[13] Idem, p. 95.
[14] Miller, Jacques-Alain Gays em análise. Opção Lacaniana. São Paulo, n. 47, dez 2006, p.15-22.