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Sérgio de Castro
Presidente do XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano

Bom dia a todos!

Chegamos finalmente ao grande dia: a abertura do XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, para o qual vimos nos preparando há um ano. Foram vinte boletins Infamiliares, doze transmissões on-line e inúmeras atividades nas Seções da Escola Brasileira de Psicanálise.

Desde a apresentação do título do Encontro e a posterior  divulgação de seu argumento, algo se pôde perceber: o intenso debate e a grande mobilização epistêmica e desejante que ele provocou. O significante infamiliar, estranho por si só em nossa língua, articulado/desarticulado ao feminino e aos limites da palavra, pelos efeitos que produziu, inclusive muito além de nossa comunidade de trabalho, parece indicar que, como dirá Jacques Alain Miller, cingimos “o que muda em nossa época”. Ou para recuperar a bela metáfora hegeliana também evocada por Miller[i], a de  que numa época como a nossa, em que “a serpente muda sua pele”,  o título de nosso Encontro permite que vislumbremos  a infamiliar carne viva que se insinua sob a metáfora da pele que se desfaz, e se chama gozo feminino. Ou, como também aprendemos com Jacques Alain Miller, gozo como tal, uma vez que ele nada terá a ver com o gênero feminino mas  com o Outro gozo.

Parece então que  pelos efeitos que constatamos uma vez que lançamos o título e avançamos no tema de nosso Encontro, “alcançamos em nosso horizonte” algo da subjetividade de uma época. É o que os dois dias que se seguem, intensos como se anunciam, tentarão demonstrar. Tal possibilidade, na qual apostamos,  é a prova do vigor e da agudeza do gume que a lâmina do discurso analítico segue mantendo.  Tanto quanto é o que permite que afirmemos que hoje, ela, a psicanálise, se tornou então “um direito” de todos os falantes.

Demonstra-lo claramente é o que pode nos fornecer argumentos de que continuamos à altura de acolher e enfrentar, com a sensibilidade e  a abertura de que necessitamos,  as duras e infamiliares questões que a contemporaneidade nos impõe. Evitá-las, ou tentar equacioná-las apenas em moldes tradicionais será, ao contrário, fornecer munição para os que nos criticam e  nos atacam.

O que se nos apresenta então hoje, para formula-lo de forma sumária, a partir do tema que nos ocupará no XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano , poderá partir do seguinte ponto: mais além de uma  lógica  simétrica e binária, onde masculino e feminino, ou onde gozo e desejo estariam todos submetidos e organizados a partir da castração e do falo, constatamos hoje o quão agudas  foram as elaborações tardias de Lacan sobre o gozo feminino ou, como indiquei acima, sobre o gozo como tal. Elas convocam justamente um além do falo. Podemos mesmo dizer que as grandes questões que nos concernem hoje, partindo de nossa prática clínica mas considerando, como aprendemos com Freud,  “que a vida psíquica do ser individual , é também, desde o início, num sentido ampliado, psicologia social”[ii], dirão respeito, tais questões, a  toda uma desregulação produzida no campo do desejo e dos laços sociais onde não se percebe mais- ou se percebe de forma muito pouco nítida-, o “ao menos um que não seria marcado pela castração”. Tal afirmação de Freud, presente em Psicologia das Massas e análise do Eu permite que tomemos, em nosso Encontro, e  sem pretender igualá-las clinica ou epistemicamente, uma série de questões das quais cito rapidamente algumas: o objeto a no zênite social, o empuxo à mulher, a feminização do mundo, o gozo não todo, o gozo místico, a fluidez e multiplicidade de lalangue, etc. Isso para termos uma idéia da amplitude e alcance de nosso tema, uma vez que ao infamiliar  o articulemos não só ao retorno do recalcado, visto que consideramos também os efeitos do declínio do  Nome-do-Pai, mas também à angústia, o afeto ao qual Freud o indexa.  Sendo assim, é possível estendermos nossa reflexão e as perspectivas que nos são abertas hoje, com nosso Encontro, a um campo político referido nos termos que o discurso analítico nos fornece. Por exemplo, perguntarmo-nos se os flagrantes regimes de exceção que proliferaram, sempre tragicamente, à direita ou à esquerda, ao longo do século XX, não foram também tentativas de respostas  a tal desregulação fálica, já observada naquele momento. Nisso é que todos eles, independentemente de sua coloração ideológica, apostaram na possibilidade de retirar, de uma  suposta tradição, elementos que propiciassem uma estabilidade e um ordenamento dos laços sociais. Foi inclusive  nessa aposta que todos eles fracassaram. E hoje, com a nova pele da serpente, ou com a crueza de sua carne viva, nos damos conta de  que o que produzia as mutações dos laços sociais que já se observavam no século passado só fez  se intensificar. Efeitos que são da incidência cada vez mais aguda do discurso da ciência na civilização e da aceleração temporal que só se acentua  em sua articulação com o discurso do capitalista, nos damos conta de que há algo de irreversível nisso. Seus resultados, infamiliares em sua maioria, os recolhemos na clínica e é a eles que devemos responder, inclusive epistemicamente, nos dois dias de trabalho que se  seguirão.

E, se aqueles regimes de exceção do século passado aos quais me referi foram trágicos, eles agora, infamiliarmente,  reaparecem como farsas, para retomar o célebre aforismo de Karl Marx. Tal  aforismo,  que afirma  que  “a história  se repete pelo menos duas vezes, a primeira como tragédia, a segunda como farsa” que abre o livro o 18 do Brumário de Luis Bonaparte, falará de uma estranha- infamiliar – duplicidade de certos personagens históricos que tentam reproduzir em momentos diferentes, fórmulas políticas  já fracassadas tragicamente no passado. Tais  fórmulas, podemos acrescentar hoje, visariam responder, justamente,  à  disrupção generalizada de um gozo infamiliar, que se diz feminino,   e que, como aprendemos com Lacan, não responde à exceção fálica. A farsa política contemporânea, típica dos regimes de extrema direita, e dada a inoperância do falo simbólico, que talvez nem se inscreva propriamente no horizonte de nossa época, tentará  lançar mão então de um simulacro: cassetetes. Arremedo farsante do falo enquanto significante de uma falta, sua brutal inoperância apenas nos indica a direção que devemos recusar! Nos termos que nos interessam hoje, poderíamos dizer que tentar fazer funcionar um lugar de exceção com o uso da intimidação, da ameaça ou da força bruta, com um enrijecido e mortífero cassetete no horizonte, só evidencia o tragicômico da situação em que estamos. O arremedo do falo alí, menos do que um índice do desejo e de eros, será um indicador de que se abriu mão da via civilizacional que nos é tão cara e decisiva. Dentre elas, a principal e constitutiva da própria prática psicanalítica, será, como sabemos, a da  palavra. É a radical e intransigente aposta que fazemos em nosso Encontro: não só não compactuar com o recurso  ao cassetete como instrumento silenciador, mas ir além e em outra direção, tentando cernir com palavras, inclusive o indizível. Na direção oposta portanto à dos arautos da morte e do silêncio imposto dos que atacam a civilização. E, na direção e na orientação que é a nossa, afronta-los com o que de melhor produzimos: Encontros, Congressos, conversações, debates, Fóruns e livros, muitos livros! Essa a nossa resposta, essa a nossa posição.

Bom trabalho a todos!

Passo a palavra a: Analícea Calmon


[i] Miller., J.A.: Ponto de Basta, Opção Lacaniana n.79, p.37
[ii] Freud, S, Psicologia das massas e análise do Eu. Autêtica, Belo Horizonte, 2020, p.137