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Wilker França[1]

Banda Atravestis

Banda Atravestis

Era noite no céu. O mundo estava colorido. Um grande som gritava “murro, murro, murro na costela do viado”[2]. Uma transsexual loira com shortinho curto cantava em uma plataforma aparentemente improvisada na traseira de um carro. Invenções de corpos. Bricolagens estéticas. Irrupturas de gozo. E uma dança que exigia perna e lombar trabalhadas. Era periferia de Salvador antes do vírus apocalíptico. Era a banda Atravestis tocando no Paulilo Paredão. Me parece o local adequado para pensar o tema do próximo encontro Brasileiro do Campo Freudiano, “O feminino infamiliar: Dizer o indizível”.

Preparemos as lanternas, velas e, por que não, nossos celulares, para adentrarmos, não tão a esmo, munidos com mapas, migalhas de pão, pichações na beira da estrada, no demasiadamente próximo feminino, infamiliar. O convite é a dizer o que encontramos (ANTELO & GURGEL, 2020).

Respondendo ao convite de Marcela Antelo e Iordan Gurgel apresentado no Argumento do próximo Encontro do Campo Freudiano e considerando o alerta de Fernando Vitale (2019) para que o limite neurótico da angústia de castração não se estenda a um limite conceitual, proponho uma articulação possível entre as invenções de corpo e o feminino infamiliar como uma bússola importante na experimentação desse litoral, com margens não tão bem definidas, (a)localizados, na mostração do pagode baiano.

Marcada por vozes grossas e masculinas vociferando o desejo por pedaços de corpo de uma mulher, esta cena é reconfigurada pelo avesso do avesso do avesso, como diria o poeta, em vozes-bricolagens, em falas que tangenciam experiências que dificilmente encontram um microfone para fazer eco. Atravestis é uma das bandas que surgem nesse novo cená-rio, situado num litoral. Ao reconfigurar a cena, algo do que estava aparentemente fora (a)parece e, ao mesmo tempo que monta uma nova cena, a-desmonta.

A partir da teorização de Lacan sobre a angústia, Miller ressalta que há algo da experiência do estranho que perturba o campo imaginário. Diz Miller: “O objeto da angústia como objeto ansiogênico, não-especularizável, é paradoxalmente especularizável, o invisível é entretanto visto” (Miller, 2005, p. 62).

Avançando sobre a distinção entre as duas modalidades de gozo, Lacan (1980) esclarece em “A terceira” que uma das modalidades transcorre entre o simbólico e o real, o gozo fálico, ao passo que a outra modalidade é experimentada no corpo, transcorrendo entre o imaginário e o real, o gozo Outro. Pensar esse litoral do pagode baiano é deixar-se apreender por invenções que vão além da referência ao gozo limitado pelo falo.

Em uma entrevista, Tertuliana Lustosa, cantora da banda Atravestis, descreve sua arte como “um processo corporal”[3] que segue os preceitos do porno-terrorismo[4]. Nesta mesma entrevista, ela se apropria do significante puta que a di-fama[5] e revela o bom uso que faz dele hoje.

“Porno terrorismo” é o nome que Diana J. Torres dá a seu livro, um relato auto-biográfico em que propõe um manifesto para que qualquer sujeito desfrute, do modo como queira, do seu corpo e de sua sexualidade. Ela define o pornoterrorismo como

[…] algo que pulsa, que jorra […] A rigidez do binarismo de gênero me asfixia sobremaneira. Assim que não sou nada que se possa encaixar(TORRES, 2010).

Há algo do pornoterrorismo que deixa o não espetacularizável à mostra, transpondo o objeto da pulsão para além de sua função fálica. É o que me suscita a seguinte imagem[6]:

Performance Porno terrorista de Diana Torres realizada em 2014

Performance Porno terrorista de Diana Torres realizada em 2014

Arrancar o pau, literalmente, ou enfiar o microfone na vagina, como sugere a imagem, apontam mais para um júbilo do que para algo da angústia. Distante da lógica representacional, com um predomínio inegável da pulsão escópica, a performance mostra paradoxalmente, com muitas câmeras produzindo diferentes enquadres para a imagem, o impossível de se mostrar, o que se experimenta no corpo, algo que é opaco à imagem. Por mais que se multipliquem as câmeras, há algo do júbilo neste corpo que se coloca a ver, mas que não se dispõe à captura pela imagem.

A queda do falocentrismo apresenta inúmeros efeitos, seja uma força que eclode para restaurar a ordem anterior, ou uma força Outra que não cessa de transbordar, apontando para além da ordem falocêntrica.

De fato, Lacan tinha razão quando afirmou que os artistas precedem os psicanalistas. Cabe a cada um de nós se deixar ensinar por eles, inclusive sobre gozo infamiliar. Invenções possíveis. Amarrações singulares, vivas e pululantes.

 

 


Referências
Antelo, M & Gurgel, I. Argumento do Encontro Brasileiro do Campo Freudiano 2020. Acessado em: 20/05/2020. Disponível em: http://www.encontrobrasileiro2020.com.br/encontro/argumento/
Lacan, J. (1974/1980). La tercera. In: Actas de la Escuela Freudiana de Paris (pp. 159-186). Barcelona: Ediciones Petrel.
Miller, J-A. (2005) Introdução ao seminário da angústia de Jacques Lacan. In. Opção Lacaniana, n. 43.
Torres, D. Pornoterrorismo. Txalaparta. Ed. 5. 2010.
Vitale, F. Das Unheimliche, una indagación estética. Dossier 100° aniversario de “Lo ominoso” (1919) de Sigmund Freud. IN: Virtualia n. 36, março 2019. Disponível online. URL: http://www.revistavirtualia.com/articulos/822/dossier-1000-aniversario-de-lo-ominoso-1919-de-sigmund-freud/idas-unheimlichei-una-indagacion-estetica
 
 

[1] Associado do Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB)
[2] trecho da música “Murro na costela do viado” da banda Atravestis.
[3] Fala dita em uma apresentação do Prêmio PIPA 2019. Pode ser acessado em: https://www.youtube.com/watch?v=KqGMPX-7pUs
[4] Essa entrevista pode ser vista no vídeo divulgada junto com esse texto. https://www.youtube.com/watch?v=GBoAnZuGoic&t=873s
[5] No seminário 20, Lacan joga com o equívoco dit-femme, on la diffâme para brincar com a impossibilidade de falar das mulheres, afirmando que o que mais se aproxima é o que delas se pode dizer de infamante.
[6] Disponível em: https://www.shock.co/opinion/fabian-paez-lopez/articulos/hablamos-con-la-precursora-del-pornoterrorismo-83265