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Imagem – Instagram @torredecollage

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“Eu tenho à medida que designo — este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la — e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas — volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu”.

 


O indizível na escrita de Clarice Lispector

Cristiane Barreto
(EBP/AMP)
Imagem – Instagram @torredecollage

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Esse trecho de “A paixão segundo GH”, ratifica a afirmação freudiana de que o artista já tenha passado antes pelo caminho que o analista traça, ou ao menos, segue pari passu  com o tema do próximo Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. Olhos voltados para o indizível.

Em Clarice o indizível ressoa. Em linhas fluidas, ou entrelinhas densas. O que se diz sobre o indizível?

A letra prepondera sobre o sentido engendrado nas palavras. Designar, verbo transitivo direto é sinônimo de apontar, mostrar algo, mas quando transitivo direto por extensão, significa ser marca, índice de, representar, simbolizar. E o que se tem “muito mais” à medida que não se consegue designar? A mulher relaciona-se ao gozo fálico, designável, e ao não todo, o gozo feminino, o que não tem designo, nem nunca terá.

E mais, ainda, Clarice escreve o indizível? No capítulo IV de “um discurso que não fosse semblante”, Lacan demarca a diferença entre falar e escrever. Escrever é condição de registro da letra, daquilo que é possível dizer e, ao mesmo tempo, do que escapa ao dito.

Clarice, em GH, coloca a mão na cumbuca da linguagem, ao se distanciar do mundo fixo e fútil e se instalar em um quarto pequeno, dos fundos, que trás elementos de uma mulher enquanto Outro da alteridade absoluta. Um objeto móvel e asqueroso,  estranho, que quando esmagado, entre o guarda roupa e o vazio, revela-se ainda mais indizível. Uma barata. Corpo agora exposto achatado, espatifa-se e escorre gosma sem nome, substância gozosa.

Ela insiste em escrever o que não se inscreve. Na linguagem, força a borda, e retorna com as mãos vazias de indizível, ou oposto dessa imagem, as mãos cheias de indizível. Trata-se, portanto, de um esforço, mas, se um esforço humano, no impossível de prescindir-se da linguagem; é frente ao inumano que exerce seu “esforço de poesia”. Dizer a barata esmagada entre o buraco do guarda roupa – que pendura vestes, semblantes-, e o fosso, o oco – que instala o asco, o indizível, o real. Um litoral.

Elementos distintos, em textura, estado e localização, evocam figuras que, ao invés de  fronteira, desenham litoral: as ondas marcam na areia lastros que se interpõe, recuam, avançam e esboçam um limite dançante, que não deixa de se instalar.

O convite da Psicanálise à construção de uma narrativa frente ao indizível – o pai, a morte, o feminino, o sulco no corpo, o que cala-, não é pela busca da origem, mas pela possibilidade de inventar narrativas que inclui deparar-se com o silêncio abissal.  Por vezes, visto de cima, contando com o elemento nuvem, para esboçar litura, terra, e, finalmente, uma lituraterra. O que de uma literatura não cessa de se querer dizer, onde o eco das palavras predomina em relação ao sentido das mesmas.

A linguagem fracassa, aí está a possibilidade de escrever. O que, afinal, achamos sem conhecer e, instantaneamente, reconhecemos? O estranho infamiliar do gozo feminino.

Quiçá a única forma de designar uma paixão, ou melhor, a única forma de uma mulher dizer o que seja uma paixão, a partir do seu singular ponto de vista, de onde ela é tomada, seja mesmo suplementar ao que nela se nomeia (se designa), e escrever-se em letras: GH.

 


A transmissão daquela que lê e escreve o Indizível

Fabíola Ramon
EBP/AMP

Com Clarice Lispector podemos navegar e sermos conduzidos pelo tema do XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano a partir dos diversos ecos que a obra clariceana nos transmite.

Fui convidada a fazer um breve comentário sobre o trecho acima, que está na penúltima parte de “A paixão segundo G.H.”. Voltei ao romance inteiro e encontrei Lacan do começo ao fim, tanto o Lacan do simbólico quanto o ultimíssimo Lacan.

Em Clarice podemos ler que, para o ser falante, é do choque material do significante com o corpo, denominado por Lacan como troumatisme, que a maravilha do humano pode se dar. Entre o dizer e o impossível de dizer, entre o humano e o inumado, entre o real e o que se escreve, nessas fraturas torcidas e retorcidas, repletas de entrelinhas, de impossível, Clarice escreve o choque da letra e do corpo. Choque que verte, bordeia, incorpora, funde e separa borromeanamente corpo e letra. Clarice não joga com a lógica do dentro e fora, mas com o furo, o fora de sentido. Sua escrita desenha, esculpe, fura, ecoa e nos faz percorrer o que despretensiosamente podemos designar como “umbigo da letra”, o ponto mesmo que impele, engendra o dizer, mas que, como sabemos, é da ordem do indizível. Como uma escultora da palavra, ela escreve a partir do que não se escreve, uma escrita que toca o real, tal como uma nota musical, esse toque que tem materialidade, mas que assim que se dá, escapa. Ela segue procurando o que escapa, e nos conduz a isso pela mão com a sua escrita. Tem no indizível uma causa e a partir dessa causa, nos transmite o indizível.

Cada palavra, cada letra encrustada em cada palavra e em cada espaço em branco entre as palavras, que reverbera no som do texto, nesse ritmo que conduz até a matéria viva da experiência de corpo, transporta para algo que está fora do tempo, é atual, presente, e por isso, infinito. Trata-se de jogar com a não palavra que incorpora a palavra e fazer disso criação.

E o esplendor disso, como G.H. confessa, é a linguagem.  A linguagem, isso que o ser falante tem. Mas Clarice nos conduz, por meio mesmo do seu escrito, a uma perda da referência no próprio campo da linguagem, para nos mostrar que é justamente ao perder essas referências assentadas no semblante, é que pode se ter muito mais…  Esse é o destino do humano, um destino cujo êxito se dá pelo fracasso; ao deixar cair as referências, os S1s que comandam, retorcê-los primeiramente ao avesso, por meio da linguagem, para depois caírem… É nesse vão, nesse interstício da queda que se pode experimentar algo do vivo do corpo, do fora do sentido. Vai-se em busca de algo que não vem e nem vai, pois está entre. Uma busca que faz retornar com as mãos vazias, destituídas dos semblantes usuais. Com as mãos vazias para que um falasser possa se escrever. Afinal, como Lacan nos lembra, a escrita faz suplência à não relação sexual[1]. É do fracasso de não se escrever a relação sexual que se pode escrever. Não seria também com o indizível nas mãos vazias que um final de análise pode transmitir o vivo da experiência analítica?

 


[1] Lacan, J. O Seminário, Livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.