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Fernando Vitale[2]

 Introdução

O convite para escrever em Virtualia por ocasião dos 100 anos da publicação original do texto “O infamiliar”, escrito por Sigmund Freud, me deu a oportunidade de voltar a percorrê-lo, seguindo desta vez algumas das indicações que podemos extrair das elaborações feitas por Lacan no seu último ensino. Acredito que essas reflexões podem nos permitir, por sua vez, reler sob uma nova perspectiva as já clássicas elaborações que Lacan realizou sobre aquele texto no seminário que dedicou à angústia.

A primeira coisa que podemos afirmar é que, sem dúvida, ler detalhadamente o texto de Freud sobre o infamiliar nos dá uma oportunidade única para nos acercarmos do que podemos considerar como o inigualável do estilo de indagação freudiana.

Comecemos pelas primeiras linhas, em que Freud nos introduz no campo onde pretende incursionar com seu texto: o psicanalista apenas raramente se sente estimulado a investigações estéticas, mesmo que a estética não se restrinja à doutrina do belo, mas seja designada como a doutrina das qualidades do nosso sentir.[3]

Ele esclarece, então, que se isso é muito raro é porque o analista trabalha em geral em outros estratos da vida anímica.

Façamos uma primeira pausa nessa referência. Sem dúvida, com isso, Freud nos diz que não é que se interesse pelo tema por uma questão de interesse pessoal – pelo contrário, ele se reconhece pouco sensível diante do que denomina essa particular qualidade do sentimento –, mas que vai fazê-lo como analista. No entanto, o que autoriza a um analista se intrometer nesses domínios tão distantes, pelo menos na aparência, do âmbito original onde sua prática nasceu e se desenvolveu? E, fundamentalmente, que interesse teria em abordar essa qualidade particular de nosso sentir?

Deixaremos isso em suspenso por enquanto, não sem antes lembrar o seguinte. Surpreendentemente, encontramos no seminário O sinthoma que Lacan vai propor que “a inquietante estranheza” – tradução francesa da expressão alemã unheimlich – é um efeito que provém incontestavelmente do imaginário[4]. Podemos acrescentar que o próprio Lacan propõe, tomando como referência a confidência que Joyce deixou sobre o espancamento sofrido na sua adolescência, que, apesar da imagem confusa que temos de nossa relação com o corpo, de onde provém tudo o que se tem tentado elaborar sob o nome de psicologia, nessa dita relação há incontestavelmente algo psíquico que se afeta, que reage quando não está destacado, como ocorreu a James Joyce[5]. Qual é, então, esse modo particular de afeição do corpo que foi sedimentado em lalíngua sob a expressão unheimlich?

 

Mais além da angústia de castração

No seminário 10, Lacan vai propor, nem mais nem menos, que o texto de Freud sobre o Unheimlichkeit constitui o elo indispensável para abordar de maneira mais precisa a questão da angústia. Ele diz isto: “Assim como abordei o inconsciente mediante o witz, abordarei este ano a angústia mediante o Unheimlichkeit[6].

Pois bem, isso é fundamental se levarmos em consideração que uma das questões centrais que Lacan vai desenvolver nesse seminário é justamente a de colocar em questão o modo como Freud deixou articulado o que para ele constituiu na sua prática seu ponto de chegada, o topo impossível de atravessar ao que denominou angústia de castração.

Este ponto requer uma precisão que considero fundamental. O que Lacan vai colocar em questão não é o fato tal como Freud faz referência, mas o que ele propõe é que não devemos esquecer que esse fato é algo extraído da experiência do neurótico. A questão então é dirimir se esse limite deve ser considerado estrutural ou se somente é assim para o neurótico. Se esse fosse o caso – como vai postular Lacan –, o trabalho a realizar é encontrar as ferramentas adequadas para que a elaboração analítica não faça do limite do neurótico seu próprio limite conceitual. Considero que essa bússola é algo de grande importância em nossos debates atuais.

É no plano do questionamento do complexo de castração onde nossa exploração concreta da angústia nos permitirá estudar o passo possível. O estudo da fenomenologia da angústia nos permitirá dizer como e por quê.[7]

A chave será encontrar os instrumentos que permitam dar à angústia o que é da angústia e dar à castração o que é da castração.

Como Miller aponta:

Seria de se esperar que no cerne de um seminário intitulado “A angústia”, houvesse a angústia de castração, que a angústia fosse abordada a partir da castração, que o ensino de Lacan havia destacado como função eminente e estruturante de toda relação de objeto. Exagero, mas não encontrarão em Lacan que seja a ameaça do pai o que desencadeia a angústia.[8]

 Pois bem, como Lacan encontra no infamiliar um suporte-chave para seu projeto quando o texto principal em que Freud se apoia é, justamente, “O Homem da areia”, de Hoffmann?

Cito Freud:

Mesmo esta breve síntese não deixa dúvidas de que o sentimento do infamiliar adere diretamente à figura do Homem da Areia, vale dizer, à representação de ser despojado dos olhos. […] Esses traços do conto, como muitos outros, parecem arbitrários e sem significado quando recusamos a ligação da angústia relativa aos olhos com a castração e se tornam plenos de sentido quando se substitui o Homem da Areia pelo temido pai, de quem se espera a castração.[9]

 O que Lacan vai questionar é precisamente essa última interpretação. Ele o fará com base na cena-chave de todo o conto, naquela em que o professor Spalanzani arremessa ao peito do herói Nathanael os olhos da boneca Olímpia – por quem o segundo se encontrava loucamente apaixonado –, os mesmos que um instante antes o herói via com horror no solo banhados em sangue e o olhando fixamente, brindando-lhe ao mesmo tempo com a revelação atroz de que esses olhos não eram senão os seus.

Como dar conta então dessa particular qualidade de nosso sentir mediante a qual podemos experimentar que o mais familiar (heimlich) torna-se ao mesmo tempo o mais estranho (unheimlich)?

O não especularizável

Como propôs Jacques-Alain Miller, no seminário 10, Lacan se esforça em nos apresentar uma fenomenologia do objeto angustiante que resulta verdadeiramente apaixonante. Como dissemos, ali “Lacan vai procurar esse objeto que angustia no próprio Freud, em seu texto sobre a “Inquietante estranheza”, no qual ele diz precisamente que explora, que tenta encontrar o núcleo daquilo que angustia”[10]. Pois bem, mas o que é que Lacan encontra nessa indagação? Que o que a experiência do infamiliar ensina é que se trata da perturbação do campo imaginário pela brusca aparição no seu seio de algo justamente não especularizável. Nesse instante: “O objeto da angústia como objeto ansiogênico, não-especularizável, paradoxalmente se especulariza: o invisível é visto”[11].

A cena de “O Homem da Areia” à qual fizemos menção anteriormente resulta em si mesma paradigmática. O clima do infamiliar é encontrada no instante em que o herói vê seus “próprios” olhos enquanto separados de seu imaginário corporal.

Esse objeto separado não é outro que o olho enquanto órgão que condensa a estimulação pulsional e que por estrutura, resultará inintegrável e em permanente contradição com o investimento narcisista.

Se esse movimento resulta fundamental para Lacan pôr em questão o fim de análise freudiano e seu limite constitutivo, é porque a experiência da angústia lhe permite distinguir dois modos da falta: aquela que anotamos (-φ) (falso furo) e a que anotamos como a (furo real). A articulação dos objetos da pulsão ao campo da lei e à simbolização fálica faz com que o neurótico, até o final de sua análise, interprete a angústia em termos de castração, pelo que o Outro não poderá aparecer sempre senão como o agente que, ao mesmo tempo que proíbe o gozo, sustenta o Ideal da consumação genital.[12]

No corpo, fora do corpo

Considero que em “A terceira”, justamente na seção que Miller intitulou “O corpo na economia do gozo”, Lacan introduz algumas referências que podem nos ajudar a prosseguir com a indagação iniciada no seminário 10.

O recurso da nova escritura forjada por Lacan a partir da utilização do nó borromeano lhe permite distinguir no campo do gozo duas modalidades completamente diferentes. Ele vai postular que a experiência analítica permite diferenciar um tipo de gozo que será caracterizado como um gozo que se localiza fora do corpo, e outro tipo de gozo que, ao contrário, tem que ser pensado como localizado no corpo.[13]

Como entender essa repartição?

Comecemos pelo primeiro, que ele denominará gozo fálico. É o gozo que transcorre entre o simbólico e o real, o que permite dar conta dos efeitos da entrada de lalíngua no corpo vivo, e do que resulta a extração do gozo que habitaria o dito corpo para se localizar nas bordas das zonas erógenas.

Então, por que Lacan o denomina fora do corpo?

Para entender essa frase, temos que nos deter no modo como Lacan começa a seguinte seção: “O corpo se introduz na economia do gozo pela imagem. Foi daí que parti. Há relação do homem, do que chamamos por esse nome, com seu corpo, se há algo que destaca que ele é imaginário, é o alcance que a imagem aí adquire.”[14]

Graças à escritura do nó, podemos distinguir um gozo que transcorre entre o simbólico e o real (fora do imaginário) que deve ser distinguido de outro que transcorre entre o imaginário e o real (fora do simbólico).

Essa é a razão pela qual o gozo fálico-pulsional é localizado fora do corpo; quer dizer, um gozo que por estrutura tem uma lógica que resulta antinômica com a sustentação do imaginário corporal.

Não por nada, acrescenta Lacan, o objeto a foi identificado inicialmente na experiência analítica a partir de imagens de corpo fragmentado; quer dizer, como estilhaços de corpo.

Por isso, nesse contexto, será fundamental a afirmação de Lacan de que o sintoma não se reduz ao referido gozo fálico.

Se o fio condutor de todo o conto é dado pelo tema de que querem arrancar os olhos do herói, não é o mesmo que lê-lo como a representação do castigo sofrido pelo temido pai devido à persistência das tendências infantis incestuosas, do que situar a questão-chave desta última perspectiva.

Os olhos enquanto órgãos da visão se separam do imaginário corporal quando se revela seu verdadeiro estatuto enquanto objeto da pulsão escópica ao serviço do gozo fálico. Desde o início, é o que é posto em jogo no conto ao mostrar o advogado Coppelius na diabólica função de fazer saltar os olhos das órbitas sob o procedimento de excitá-los mediante a utilização de carvõezinhos ardentes e flamejantes… O próprio Freud, numa nota de rodapé, acrescenta que a esposa de Rank lhe fez notar as derivações significantes de dito nome: “coppela = copela (vejam as operações químicas como resultado das quais o pai encontrou a morte); coppo: a órbita do olho”.

Essa é a outra chave trazida por Freud, que, como nos lembra Strachey, enquanto escrevia Das unheimliche, se encontrava terminando seu célebre “Além do princípio do prazer”:

No inconsciente anímico, com efeito, o domínio de uma compulsão à repetição é discernido, o que, provavelmente, depende, por sua vez, da natureza mais íntima das pulsões; tem poder suficiente para subjugar o princípio do prazer e confere caráter demoníaco a certos aspectos da vida anímica.[15]

O parceiro objeto e o parceiro sintoma

Como nos lembra Lacan no seminário 10, “não é em vão que Freud insiste na dimensão essencial que o campo da ficção dá à nossa experiência do unheimlich”. Enquanto na realidade vivenciada ela é demasiadamente fugitiva, a ficção literária, ao lhe dar mais estabilidade, permite articular com mais precisão a estrutura em jogo.

Mas ainda ocorre, como observa Freud, que “o escritor também pode desviar nossos processos de sentimento de um determinado resultado para acomodar outro e com o mesmo material muitas vezes pode obter os mais variados efeitos”.[16]

O seguinte exemplo é válido. Pouco antes do trágico final do herói Nathanael, Hoffmann faz falar um professor de poesia e de retórica que, depois de tomar sua dose de rapé e de espirrar como de costume, em um tom grave dirá: “Honoráveis damas e cavalheiros, vocês não se deram conta de qual é o quid da questão? Tudo isso é uma alegoria… Uma absoluta metáfora! Os senhores me entendem! Sapienti sat![17]

Esclarece-se então que parece que a brincadeira macabra da qual tinha sido vítima Nathanael não havia sido em vão e que deixara sua marca especialmente nos homens do povoado.

Seu affaire com a bela autômata Olímpia, em quem o herói havia acreditado encontrar finalmente a parceira desejada de seu fantasma, produziu em muitos deles um singular efeito. A partir daí, como nenhum deles se sentia a salvo das mesmas desventuras que lhes pudessem acontecer, ao contrário de suas tendências habituais, passaram a buscar provas para verificar que não amavam nenhuma boneca de madeira. Seguramente não tardaram em encontrá-las.

A não relação pode ter também efeitos vivificantes.

Quando Lacan afirma que o que tentou fazer com o nó é dar outro corpo à singular e surpreendente intuição freudiana fundamental, ele nos deixa sob custódia um verdadeiro filão. Se para Freud tudo se sustentava na função do pai como o operador capaz de enodar o amor ao agente da castração, para Lacan é a função do sinthoma o operador no qual se apoia para ampliar os recursos com os quais cada falasser conta para sustentar o enodamento desse Outro gozo que transcorre entre o imaginário e o real, face ao irredutível dos embates do gozo fálico.

Nathanael não acreditou no sintoma.

Tradução: Iordan Gurgel
[1] Artigo originalmente publicado em: VITALE, F. Das Unheimliche, una indagación estética. Virtualia, Revista Digital de la EOL, Dossier 100° aniversario de “Lo ominoso” (1919) de Sigmund Freud, ano XVIII, n. 36, mar. 2019. Disponível em: <http://www.revistavirtualia.com/articulos/822/dossier-1000-aniversario-de-lo-ominoso-1919-de-sigmund-freud/idas-unheimlichei-una-indagacion-estetica>.
[2] Psicanalista em Buenos Aires. AME da Associação Mundial de Psicanálise e da EOL (Escuela de Orientación Lacaniana). AE (2017-2020).
[3] FREUD, S. O infamiliar. [Das Unheimliche] Trad. Ernani Chaves, Pedro Heliodoro Tavares [O Homem da Areia; tradução Romero Freitas]. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. p. 29. (Obras Incompletas de Sigmund Freud, 8)
[4] LACAN, J. O seminário, livro 23: O sinthoma. (1975-1976) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 47.
[5] LACAN. O seminário, livro 23: O sinthoma. Op. cit., p. 146.
[6] LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia. (1962-1963) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 51.
[7] LACAN. O seminário, livro 10: A angústia. Op. cit., p. 56.
[8] MILLER, J.-A. Introdução ao seminário X de Jacques Lacan. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, Eolia, n. 43, p. 17, 2005.
[9] FREUD. O infamiliar. Op. cit., p. 63.
[10] MILLER. Introdução ao seminário X de Jacques Lacan. Op. cit., p. 57.
[11] MILLER. Introdução ao seminário X de Jacques Lacan. Op. cit., p. 62.
[12] LACAN. O seminário, livro 10: A angústia. Op. cit., p. 285.
[13] LACAN, J. A terceira. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, Eolia, n. 61, p. 30, 2011.
[14] LACAN. A terceira. Op. cit., p. 22.
[15] FREUD. O infamiliar. Op. cit., p. 79.
[16] FREUD. O infamiliar. Op. cit., p. 113.
[17] Expressão latina que significa “a bom entendedor…”.