Pénélope Fay[3]
Daquilo que atravessa seu corpo, a mulher não pode dizer sequer uma palavra. Às vezes.
Dos dois gozos com os quais ela tem que se haver, um se nomeia facilmente, já que é localizado num lugar definível, de fronteiras claras. O gozo fálico responde de fato às leis da linguagem e da racionalidade, a começar pelas categorias do espaço-tempo: sabemos onde isso começa, onde e como isso termina.
O Outro gozo, para manter intacta a alteridade que o caracteriza, não pode se dizer. Aí ensaiamos por tateamentos, por rascunhos.
Mal fora esboçado, e já foge, transborda, se transforma. Ele não entra nos moldes. Aplicar-se a nomeá-lo é uma operação cujo resultado permanece evanescente. Dar-lhe uma definição de ser é crer em sua consistência.
Esse parêntese fálico pode ser um refúgio, por algum tempo. Porque este gozo Outro tem um caráter de estranheza, aos perfumes do real[4]. Fazê-lo calar ou fazer pouco caso dele distancia assim do sentimento de estranheza em sua própria morada[5], sentimento de desconforto, de inquietude, até mesmo de pavor.
Intrusão
Esse gozo torna a mulher estrangeira a ela mesma. É dizer que, enquanto ela está às voltas com este mais além, ela não se reconhece mais. O familiar, aquilo que faz habitus, vacila. A representação que ela faz de si mesma se torce e se transforma, a começar pela imagem de seu corpo próprio. Pensar a imagem da anamorfose[6] dá uma ideia dessa deformação da representação que ela faz de si mesma e os esforços a serem feitos para reconstituir a bela unidade.
Se a imagem do corpo, na sua unidade fixa e lisa, é um “engodo”[7] que recobre o despedaçamento do corpo e as torções do vivente, ela é esse utensílio “ortopédico”[8] que mascara o redemoinho de todo gozo, seja ele feminino ou não. Ora, contar com a unidade é crer na identidade e suportar dificilmente o desarranjo da alteridade, do estrangeiro, da diferença e, portanto, do feminino.
O gozo, esse estrangeiro que faz intrusão, desarranja o eu, a ponto de tornar proeminente a “cor paranoica”[9] do eu daquela que com ele se assusta. Querer excluir esse Outro gozo pode torná-lo ameaçador, à maneira desse estrangeiro que gostaríamos de recalcar mais além dos territórios.[10]
No livro de Annie Ernaux, L’occupation[11], levado às telas sob o título L’Autre[12], há uma cena que ilustra a intrusão desse estrangeiro, rival ameaçador, que obseda a heroína. Aquela que encarna Dominique Blanc mira sua imagem num espelho, mas a imagem dela não está completamente sincronizada; vê-se uma pequena decalagem de alguns décimos de segundo: a mulher que está no espelho vira a cabeça um pouquinho tarde demais, ou então a mulher que se mira vira a cabeça um pouquinho cedo demais. Inquietante estranheza.
A Outra mulher se duplica no espelho, fazendo brotar um gozo a ser considerado como acontecimento de corpo[13], que é o nó da questão:
Pela primeira vez, eu percebia com clareza a natureza material das emoções, cuja consistência eu experimentava fisicamente, a forma mas também a independência, a perfeita liberdade de ação em relação à minha consciência. Esses estados interiores tinham seu equivalente na natureza: arrebentação das ondas, desmoronamento de falésias, abismos, proliferação de algas.[14]
Desdobramento
O gozo feminino pode evocar essa inquietante estranheza que não entra nas formas, nem na forma do corpo, nem num espaço formal, nem nas formas da linguagem, e que excede a cifragem fálica, não se contabiliza e, portanto, não se segmenta. É nisso que podemos dizer que ele frequenta o ilimitado, tem afinidades com o infinito.
O corpo do qual o gozo se apodera não é o do imaginário, ele não “esgota a forma”[15], não podendo ser inteiramente contido em sua representação. É um corpo que se goza, “um corpo que é totalmente situado pelo sui-gozo […] sem a mediação do outro que vê, mesmo se esse outro sou eu mesmo”[16]. A partir do momento em que esse gozo não tem lugar nem localização determinada, ele pode fazer advir certa exterioridade: a mulher estrangeira a ela mesma se desdobra. Esse desdobramento advém justo ali onde falta a mediação.
Esse desdobramento pode ser experimentado conforme dois aspectos: o primeiro é feito dessas experiências que a fazem Outra para si mesma e onde certas palavras podem tentar cercar aquilo que não tem contorno; o êxtase, a vertigem, a ruína, o absoluto, o nada, o entusiasmo[17] fazem signo de certa exterioridade: a centralidade do sujeito se estilhaça, pouco importa o ponto de onde se originam esses estados, as maravilhas como os abismos não têm limite nem ordem, nem orientação, nem lógica.
Desses estados pode igualmente nascer um sentimento de estranheza, cujo afeto pode ser a angústia, companheira ocasional do real. No seminário 10, Lacan fala desse “resíduo não imaginado do corpo”, o qual, “por não ser especular, torna-se impossível de situar”[18]: é aí que este resto se torna um objeto desconhecido “experimentado como tal”[19]. Esse momento de surgimento do objeto, diz Lacan, nos lança na dimensão do estranho. As referências se tornam frouxas. O sujeito vacila, perde pé.
A segunda versão desse desdobramento, e da estranheza que o acompanha, é o vaivém ao qual a mulher se presta, mais ou menos de bom grado: vaivém entre o gozo fálico e o gozo Outro, movimento de pêndulo dado pelas flechas da tábua da sexuação, movimento dado por intermédio do homem que “serve aqui de conector para que a mulher se torne esse Outro para ela mesma”[20]. Devir Outra significa que ela tem que se haver com essas duas formas de gozo, ela se desdobra, diz Lacan no seminário Mais, ainda[21].
Não todas: algumas relutam a “se servir do homem como conector”[22].
Culto
Quando a mulher se apaixona pelo objeto fálico, ela pode tentar torcer o pescoço a essa estranheza. Não tentando fazer entrar na linha o irredutível de sua feminilidade: não é um trabalho de redução que ela opera, daquele que tentaria aplanar esse Outro gozo.
É mais precisamente que ela vê além: ao horizonte onde se situa o pai morto. O amante castrado, o homem morto, o íncubo ideal[23]: essas três nomeações fazem existir um mais além que lhe permite fazer vibrar um chamado e uma espera que não cessam de se renovar, falta reiterada que se nutre de um gozo infinito.
Do amante castrado, ela retira a impotência e um mais além dos corpos: uma palavra.
Do pai morto que se pode deduzir do homem morto, ela usa de sua ausência para prestar culto àquele que está “mais além do vivente”[24] e esperar aquilo que ele não tem e aquilo que não acontecerá: que ele lhe dê mundos e fundos.
Do íncubo ideal: o frisson da estranheza.
Lacan não escreve “homem ideal” mas “íncubo”, referindo-se a O pesadelo, de Ernest Jones, dando um ar irracional a essa figura. O íncubo é o nome dado ao demônio macho que vinha pousar sobre o peito de uma mulher e possuí-la sexualmente durante seu sono. Nos relatos dessas visitas, Ernest Jones nota essa “mistura de traços voluptuosos e repulsivos”, relato feito de “sofrimento” e “asco”[25]. “Às vezes são as angústias do sufocamento, da paralisia, às vezes, ao contrário, é uma superexcitação violenta dos órgãos sexuais com a sensação de liberação do sistema muscular, qualquer coisa como a vertigem da velocidade.”[26]
A figura do “íncubo ideal” viria personificar o homem longínquo, suficientemente Outro, que viria fazer gozar se referindo à “sensibilidade de bainha sobre o pênis”[27]. O gozo advém, mas ele é Outro. E a figura do íncubo viria cobrir de estranheza aquilo que não tem nome, sob o risco de ali se perder e de se queimar na paixão da falta até chegar a fazer disso um troféu… Aproximar-se dessa zona, tentar fazer entrar aquilo que é possível na linguagem e usar de certa poesia para transmitir a obscuridade irredutível é outra versão do apelo.