Sônia Vicente
Tempo de pandemia. Tempo de isolamento social. Tempo de mudança de paradigma. Tempo de atendimento online. Tempo de transformações! Para onde vai o mundo? Atentos à responsabilidade de cada um pelo que acontece, a Comissão Organizadora, passado o instante de ver, da surpresa frente ao real que nos invade, relança os trabalhos rumo ao XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano e traz à evidência a preparação que se encontra efervescente nos bastidores. No tempo de compreender, acompanha o movimento mundial de realizar cada vez mais transmissões online e seus efeitos que familiarizam o infamiliar no nosso cotidiano.
É nesse tempo que o Boletim #03 traz no seu bojo os instigantes e conectados eixos em torno dos quais girarão os trabalhos de nosso Encontro. Eles serão o nosso leme e, como tal, guiarão nossas produções. Eixos que estimulam nosso desejo de saber e dessa maneira convidam à produção.
O eixo 1, Das Unheimlich, ressalta o âmago do nosso interesse. A tradução desse termo por Infamiliar surpreende, provoca, ao tempo em que suscita o Lacan do Seminário XXIV ao falar da poesia e interpretação, afirmando que a língua é fruto de um amadurecimento que se cristaliza no uso. Essa afirmação aponta para as diferentes traduções desse termo que passam por inquietante e estranho até chegar ao infamiliar, que traduz com eficácia que a poesia depende da violência feita ao uso da lingua, remetendo ao campo da verdade sobre a relação sexual que não existe. É dessa maneira que o infamiliar representa o estranhamento no encontro com algo familiar. Passa, assim, pela perspectiva freudiana que aproximou o infamiliar da pulsão de morte, evidenciando que Freud, em todo seu percurso, apontou a inquietante estranheza, principalmente com as histéricas, ao perceber que o significante afeta o corpo, dando nesses primórdios um tratamento familiar à relação com o Outro. Vemos aí uma aproximação ao conceito de real em Lacan.
Essas colocações conduzem a mergulhar no eixo 2, O gozo feminino e o gozo como tal. Lacan enfoca a relação com o Outro pela via do discurso, que se organiza em torno de Um gozo. O gozo feminino, uma experiência corporal, onde cada um se entrega em sua solidão, dispensando o Outro. Impossível de traduzir em palavras, gozo irredutível e não-todo, submetido a lógica fálica. É, assim, um acontecimento de corpo, sem sentido. Para Lacan, o Outro é o corpo, indizível/dizível, familiar/estranho, corpo que dá medo, medo de algo vivo que se conecta o gozo. Há dois lados: o do supereu com seu Goza e o do sinthoma como parceiro, impulsionando a encontrar soluções singulares.
É o que nos aportar ao eixo 3, Gênero e Função Analítica. Esse eixo lança o desafio de pesquisar o gênero não como sexo biológico, mas como uma forma de lidar com o impossível da relação sexual. A pesquisa do gênero nos surpreende e instiga porque vai na direção da posição do sujeito na relação com o próprio corpo e com o Outro. Estamos no regime de gozo que itera e se aloja no sinthoma. Referenciamos a Um corpo, mergulhado na perspectiva do infamiliar, para chegar a identidade sinthomal, que é do Um sozinho, do corpo vivo que se goza. Para isso devemos questionar a noção de conceito /não conceito da qual podemos encontrar elucidação em Lacan no Seminário 11. A experiência analítica testemunha a escolha entre a pluraridade de identificações e a solidão do Um, conduzindo à constatação de ser não-toda, no que vai além dos significantes vindos do Outro. Trata-se da singularidade de cada um.
Esses eixos permitem refletir na clínica: como lidar com questões de gênero e com a feminização do mundo, como sintomas de nossa época? O que podemos tocar do infamiliar? O que podemos dizer do indizível?
Até lá e bom trabalho à todos.