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Marina Costin Fuser[1]

 

Cada um de nós faz, (querendo-o ou não o querendo) enquanto vive uma ação moral cujo sentido se encontra suspenso. Disso é a morte a razão. Se fôssemos imortais seríamos imorais, porque o nosso exemplo nunca teria fim, seria assim indecifrável, eternamente suspenso e ambíguo…O Homem de cujos olhos [uma]… breve lágrima transbordou e se despredeu, sublime, era apenas um pecador: o seu exemplo (em termos gerais e do catolicismo) fora um mau exemplo. Esta lágrima inverteu, porém, o sentido de sua vida: lançou sobre ela, retrospectivamente, uma luz completamente diferente: o mau tornou-se um não mau, um contrário de bem, uma vontade de ser bem, um bem inexpresso, uma raiva de não ser bem, uma impotência de não querer o bem, uma forma aberrante, e portanto divina (PASOLINI 1982).

Destaco uma frase de Empirismo Herege de Pier Paolo Pasolini para pensar sobre a relação estreita entre a moralidade e a morte. Pois a morte é onde se realiza a montagem da vida, onde se faz a curadoria minuciosa dos momentos sublimes, sagrados e profanos que ausferem sentido à vida: sentido este que é carregado de uma moralidade, que tanto pode ser religiosa como laica, pouco importa, já que quem articula o jogo de sombras e de luz é o montador, com a última palavra do mise-en-scène. Como num juízo final, o montador joga com os cortes, procura criar uma linguagem que defina a tônica de conflito e errância de um plot, uma narrativa fílmica que estabelece uma série de pecados capitais, que entram ou saem, e se combinam para dar corpo a uma história. Com efeito, a moralidade, não a do mise-en-scène, mas a do universo de Pasolini, flerta com a religião a todo momento. Mas há que se separar o joio do trigo, a saber: a religião da moralidade, cujo sistema de valores se edifica através da religião, e cria dilemas no contato com o profano. O elemento destetabilizador em Pasolini tramita em torno do desejo carnal. Eu poderia falar de grande parte de sua filmografia nesses termos, mas dirijo-me a um filme bastante específico: Teorema. É, pois, numa família burguesa, onde a moralidade se imiscui entre os valores do catolicismo que estruturam a sociedade italiana com os valores burgueses de Milão, uma cidade industrial.

A chegada de um visitante desperta o melhor e o pior de cada personagem, acendendo a chama de um desejo fulminante. O misterioso visitante seduz primeiro a empregada, uma mulher devota, cuja beatitude é posta à prova pelo desejo antes mesmo do ato se consumar, e atravessa uma morte simbólica materializada pelo suicídio fracassado para libertar algo que a aprisiona dentro de si. Não satisfeito com a proeza, o visitante investe sua inesgotável lascívia em cada membro da família: o filho sensível, a mãe cuja sexualidade fora reprimida ao longo da vida, a jovem filha super-protegida, e por último o patriarca, chefe da família, que cai enfermo e atormentado. A transformação do misterioso sedutor faz com que cada personagem olhe fundo no abismo da insignificância de sua vidinha burguesa e busque meios de transcender seus próprios grilhões, buscar meios de se libertar de seus respectivos fardos. Amado é o estranho visitante, cuja desaparição súbita mobiliza afetos para direções até então inesperadas.

O personagem intruso de O Estranho que Nós Amamos (2017) de Sofia Coppola também aparece misteriosamente num lar onde a sociedade vigente consideraria moralmemente impecável. Não obstante, o contexto é bastante distinto: no fim da guerra civil dos EUA, um soldado yankee é encontrado por uma menina que colhe cogumelos na floresta nos entornos de um lar de moças numa região rural na Virgínia, onde o Cristianismo e o fino trato dão a tônica de um ambiente puritano e rígido. O filme de Coppola é uma refilmagem do filme com o mesmo título em inglês, The Beguiled, de Don Siegel baseado num romance de Thomas Cullinan, só que nesta última versão o olhar se desloca, girando os holofotes do personagem misterioso para o protagonismo das moças, o que complica o quadro que fetichiza os olhares entre quem é a presa e quem é o predador, quem é sujeito e quem é assujeitado pelo olhar e em que medida esse jogo de sedução se torna um jogo vil, por assim dizer. Se falamos em vileza, onde se instaura o cerne da maldade? O título deste artigo leva o nome de “Feminino” Herege como um trocadilho com o livro de Pasolini onde a linguagem do cinema coloca em destaque a moralidade religiosa. A palavra “feminino” está entre parênteses, pois se alude a deslocamentos de um feminino que coloco em suspeita.

O jogo começa no momento em que a Sra. Martha consulta todas as moças da residência se elas acham que acolher o cabo seria um digno ato Cristão, ou se pelo contrário, seria preciso seguir os preceitos dos confederados e amarrar uma fita azul indicando a presença do cabo yankee. Todas concordam em escondê-lo, exceto uma, que pressente o perigo em receber um inimigo no interior de seu lar, mas ela é ignorada pelas demais. Toda essa conversa se desenrola sem a participação do sujeito, que repousa sob os cuidados de Martha. A cena do banho, regalia da própria dona da casa, que lava seu corpo num leito com um balde e uma toalha chega num ponto tenso, onde ela mal contém sua libido dirigida a região pélvica, coberta por uma tessitura fina que separa seu desejo da carne do rapaz, que todavia dorme. Rígida, ela oscila entre a libido e o ônus da responsabilidade de manter uma conduta exemplar para as moças da casa, onde seu desejo seria insustentável. Em vários momentos ela salienta que a presença do cabo teria um caráter temporário, sem decartar a possibilidade de entregar sua sorte aos braços armados sulistas. Sua frieza é praticamente inquebrantável, salvo pelo desejo carnal ao qual ela se permite quando se encontra a sós com o invasor. Pois neste filme, o visitante não é anunciado por um anjo como em Pasolini, e ainda que seja carregado sobre os ombros de Jane, uma menina prodígia, em momento algum ele deixa de ser tratado como invasor. Mas ainda assim, o despertar do invasor instiga curiosidade e volúpia nas moças de fino trato.

Os planos abertos colocam em relevo o branco impecável da casa sem a gastura do tempo ou indício de qualquer sujeira. O branco dos lençois estendidos sobre o jardim, sem uma única mancha, constrasta com o fundo verde-musgo, que por sua vez vai se tornando enigmático à medida que se distancia do jardim. A floresta onde o corpo do cabo é encontrado parece de contos de fada, com brumas e trepadeiras em troncos enormes, habitada por um espectro sombrio e enigmático, também comum aos contos de fada. A floresta é um lugar assombrado por predadores naturais e imaginários, por tropas inimigas e todo tipo de pesadelo. As moças se recolhem cedo. Poucas se atrevem a ir à floresta, salvo a menina Jane. O perigo habita o outro lado da cerca, onde o homem pode ser descoberto. Mas aos poucos as sombras da floresta vão se infiltrando na casa. Enquanto as moças flertam com o rapaz, o convívio é leve.

O conflito se instaura à medida que o desejo dele se manifesta. Com efeito, ele entra no jogo das moças e passa a seduzi-las, correspondendo aos estímulos que lhe são dirigidos. Sua predileção se volta para Edwina, a mais prendada das moças, fluente em francês, porém a mais repressa de todas. Com sensibilidade, o cabo deduz que seus movimentos contidos camuflam um desejo de fugir daquele Sul provinciano e explorar o mundo… Que por trás desse vestido abotoado até a gola há um profundo desejo de liberdade. Ela responde com o olhar, mais do que com palavras. Ela age com desconfiança, mas através de uma luneta, ela o espia pela sacada, protegida pelas colunas neoclássicas da fachada da casa e pelas cortinas entreabertas, entre as quais ela pode se recolher. Embora ele flerte com outras moças da casa, é para ela que o cabo declara palavras de amor. Mas enquanto ele a incita a fugir para o Norte progressista, ele diz à Martha que a casa precisa de um homem presente, insinuando um desejo de ficar ao seu lado. De repente o homem, que até então parece um fantoche nas mãos das mulheres, passa a fazer o seu próprio jogo de sedução. Ele promete passar a noite no leito de Edwina, e ela o aguarda ansiosa. Ele não aparece. Ao sair em sua procura, ela o flagra no quarto de Alicia. Furiosa, ela o atira escada abaixo. Sua perna, que estava quase regenerada, é lesada de forma aparentemente irrecuperável. Na calada da noite enquanto o homem está mais uma vez desacordado, Martha resolve que a única saída é amputar sua perna. Realizado o prodígio, a harmonia de flerte que até então habitava a casa, onde o pecado aparece entre rezas em forma de risos e olhares furtivos, cede lugar para um clima de horror e de medo. O homem acorda como uma besta que desperta voraz, tal como uma fera ferida cujo sono fora perturbado. Ele se torna violento, agressivo, como se por trás daquela aparência de homem sensível houvesse um predador sem escrúpulos e sem modos. Com um revólver na mão e uma garrafa na outra, o cabo invasor se dirige à Martha e à Edwina, que se colocam fisicamente na frente das demais: “Como vocês foram capazes de arrancar minha perna?” – Os gritos assustados das crianças indefesas – pois nem às crianças ele poupa com sua ira irrefreável – dão a impressão de se tratar de um monstro vil que aterroriza um lar de moças indefesas. Se elas não fossem ingênuas, abrindo a porta de sua casa para acolher o cabo desertor, nenhum mal lhes teria ocorrido, e o bem reinaria naquele éden sulista.

Mas bem, as palavras do homem embriagado e furioso voltam como uma indagação: “Como vocês foram capazes de arrancar minha perna?” De fato, elas foram capazes de joga-lo da escada e arrancar sua perna sem sequer consulta-lo. Todas as decisões sobre a sorte do cabo foram tomadas sem que ele fosse consultado. Ele é tratado como um prisioneiro. Não obstante, o prisioneiro que se comporta mal tem que ser punido. Nessa altura do campeonato, a única saída é a morte. A sentença de morte é sugerida pela menina mais nova da casa: “Ele gosta de cogumelos. E se Jane colhesse os cogumelos ruins?” Com a cumplicidade de todas as moças, a sentença é levada até o fim: seu corpo é envolto num lençol e cuidadosamente costurado, enquanto Martha amarra uma fita azul desgastada no portão da casa para anunciar aos confederados a presença do invasor. O homem fora capturado, torturado e morto por moças puritanas com seus lençois brancos. Se o prisioneiro permanecesse vivo, ele seria um morto-vivo, como na citação de Pasolini com a qual inicio esse texto: um mau que não é tão mau, um contrário de bem num sentido do bom prisioneiro, uma vontade de ser bem e restabelecer uma harmonia ilusória, um bem que não tem como se expressar ou se realizar, uma raiva de não ter como ser bem sem sua perna e sua dignidade de decidir sobre seu próprio desejo, uma impotência de não conseguir restabelecer aquilo que ele outrora julgou como bem, e por fim o aberrante, que longe da oposição entre divino e sagrado, se situa fora da moralidade mesma, já que há justificativa tanto para o bem quanto para o mau, mas o desejo já se encontra fora daquela casa. A única libertação possível é a morte, para restituir sua dignidade, que seria sentida como o grito de um algoz frente à delicadeza vil que o afronta, uma delicadeza de lençol sem manchas.

O filme é alvo de críticas, uma vez que no texto original do livro de Cullinan, A Painted Devil (Um Diabo Pintado) a personagem de uma escrava negra habita aquele lar Sulista, Hattie. Hattie foi excluída do roteiro. O contexto histórico da Guerra Civil torna bastante pertinente a existência da personagem, o que fornece base para que se critique essa ausência desconfortável. Mas a resposta da diretora é convincente:

Eu acho o tema tão relevante que eu não queria trata-lo como secundário à trama, então resolvi abrir mão da personagem… É algo tão importante que eu não queria aborda-lo superficialmente. Eu não queria ser desrepeitosa sobre algo tão sério. (minha tradução).   (COPPOLA In EISENBERG 2017)

Entendo que se a diretora desse à questão da escravidão um tratamento cuidadoso e central, talvez fosse difícil manter intacto o eixo do conflito. Seria outro filme. Mas nada impede que o outro filme não seja bom. Por mais que eu entenda a justificativa da diretora, insisto que teremos que viver com esse desconforto espinhoso: o de uma personagem que foi apagada por trazer em seu cerne uma outra relação de dominação que complicaria ainda mais o fluxo da narrativa de um filme que já não é simples. É um dilema sem saídas fáceis.

Não concordo com a caracterização de alguns críticos de que se trate de “um olhar feminino” sobre o romance de Cullinan, ou com a oposição binária entre olhares masculino (de Don Siegel) / feminino (de Coppola). Não entendo o feminino e o masculino como essencialismos que determinam o olhar. As finas lentes que orientam os olhares das personagens mulheres do filme de Coppola apresentam capilaridades sociais imbricadas, e deslocadas das expectativas binárias que petrificam o olhar de moças de fino trato. Quando o jogo de olhares se complica, chegando a aparecer invertido nas cenas de clímax, não se pode falar na inversão de papéis, entre predador e presa, algoz e vítima, já que o bem e o mal não aparecem como lençois sem manchas. O deslocamento está no protagonismo: são elas que dão as cartas durante praticamente todo o filme, com seus rostos iluminados, quando ele permanece na sombra ou fora de foco. Elas desempenham subjetividades ativas, enquanto ele se posiciona de modo passivo perante à câmera e às demais personagens, salvo quando ele se comporta como prisioneiro indisciplinado. Não é o olhar da diretora que é feminino, mas o protagonismo que é de mulher.

 

[1] Marina Costin Fuser é doutoranda em cinema e estudos de gênero na universidade de Sussex (Reino Unido). Ela pesquisa o cinema de Trinh T. Minh-ha e é bastante influenciada pela teoria de Gilles Deleuze. Passou um ano pesquisando sob a supervisão de Trinh T. Minh-ha na UC Berkeley, onde cursou seu doutorado-sanduíche. Ela pesquisa e atua no campo de gênero desde 2006, contribuindo com artigos e pesquisas, dentre as quais se destacam: “Um estudo acerca da emancipação da mulher em Simone de Beauvoir” e “Mulheres que dançam à beira de um abismo no teatro político de Hilda Hilst”. Sua tese em curso aborda o nomadismo no cinema de Trinh T. Minh-ha. Marina fez parte da fundação do Inanna, núcleo transdisciplinar de investigações de sexualidades, gêneros e diferenças da PUC-SP. Integrou o GenEq – Gender Equity Resource Center (Centro de Recursos sobre Equidades) em Berkeley e o NGender – núcleo de estudos de gênero de Sussex. Foi colaboradora do Reframe Activism – coletivo de doutorandos e acadêmicos militantes de Sussex, e fez um estágio em curadoria de cinema no Pacific Film Archive, em Berkeley. É bacharel e mestre em ciências sociais pela PUC-SP sob a orientação da Dr. Carla Cristina Garcia. Foi bolsista de doutorado pleno no exterior pela CAPES. E-mail: marinacfuser@hotmail.com.

BIBLIOGRAFIA
  • EINSENBERG, E. (2017) Why Sofia Coppola’s ‘The Begiled’ Cut Out Its Most Controversial Character, CinemaBlend 30/06/2017 Disponível na web através do link:
  • http://www.businessinsider.com/sofia-coppolas-beguiled-cuts-out-controversial-character-2017-6
  • PASOLINI, P.P. (1982) Empirismo Herege. Lisboa: Assírio & Alvim

FILMOGRAFIA
  • Teorema (1968) de Pier Paolo Pasolini
  • O Estranho que Nós Amamos (2017) de Sofia Coppola
  • The Beguiled (1971) Don Siegel

O XXIII Encontro Brasileiro de Campo Freudiano agradece a autora a disponibilização do texto para divulgação no Boletim Infamiliar.