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Miquel Bassols[3]

 

A relação entre a feminilidade e a letra foi colocada por Jacques Lacan em inúmeras ocasiões ao longo de seu ensino.[4]

Foi assim que ele pôde ir além do beco sem saída a que Freud chegou com sua teoria fálica e com o chamado rochedo da castração no final do percurso de uma análise. Curiosamente, o termo que Freud encontrou para situar essa dificuldade foi “o continente negro da feminilidade”. Assim, indicou a impossibilidade lógica de representar boa parte da sexualidade feminina de acordo com os parâmetros da geografia fálica; uma geografia métrica em que tudo é medido pela presença ou ausência do símbolo fálico. É, de fato, a geografia que a sexualidade infantil continua a usar para responder à pergunta sobre a diferença entre os sexos e é a que a psicanálise encontrou e continua a encontrar em suas análises. Mas, uma vez que a bússola da lógica fálica foi tomada para mapear a sexualidade feminina, um novo continente se abriu para Freud mais além da localização do gozo no símbolo fálico, uma terra incógnita que segue sendo hoje um lugar de toda sorte de mal-entendidos e especulações.

O instrumento cartográfico de Freud era, de fato, a estrutura edipiana com a dialética do falo e a castração, como símbolos da diferença sexual. Ele foi capaz de explicar, assim, boa parte dos problemas colocados pelas neuroses e as identificações sexuais, mas sua lógica colidiu com um real impossível de explicar, especialmente quando se tratava de colocar a singularidade da sexualidade feminina em relação à função da aparência, da mascarada ou do “parecer ser“, como diriam os barrocos.[5]

Além da lógica fálica

Por exemplo, no registro do gozo sexual, às vezes se diz que é muito mais fácil fingir um orgasmo feminino do que fingir um orgasmo masculino.

No lado masculino, ou há ou não há. É bem mais complicado enganar com isso. No lado feminino, pode ou não haver; pode haver um pouco mais ou pode haver um pouco menos, não é seguro. Sem dúvida, pode-se fingir muito melhor, e a lógica binária que governa a geografia fálica se demonstra totalmente imprecisa para explorar os relevos e depressões dessa relação com o gozo.

Fazia falta uma nova cartografia que a teoria freudiana só chegou a descrever com essa expressão “continente negro”, como quem diz “obscurecido pelas nuvens”, ou, vendo já o interesse para o nosso tema, como uma página em branco.

Fazer desse continente negro freudiano uma página em branco para a letra lacaniana pode, então, resultar numa operação interessante de leitura.

O ensino de Lacan, a partir dos anos cinquenta, interpretou os becos sem saída freudianos como verdadeiras questões que convinham ser desenvolvidas para daí extrair suas últimas consequências.

Assim, no final dos anos 1970, a questão da sexualidade e do gozo feminino foi um ponto de referência e elaboração constantes para Lacan. A orientação lacaniana pôde, assim, situar o tema das posições sexuadas, a masculina e a feminina, o tema do desejo e do gozo, mais além dos ideais sociais promovidos pelos discursos normativos, mesmo quando assumem uma aparência científica. Para resumir os traços fundamentais dessa orientação, diremos que além da lógica fálica, onde o único significante que existe para marcar a diferença entre os sexos é o significante do falo, a pergunta sobre a feminilidade e o gozo feminino abre o campo do gozo do Outro, do gozo como alteridade, onde opera outra lógica. Trata-se de uma lógica não dicotômica e não binária, que não permite construir um conjunto fechado ou um Todo universal, mas que funciona como um Não-todo, que deixa o conjunto em estado aberto e obriga seus elementos a serem considerados um por um, sem uma definição prévia válida para todos. Na lógica dos conjuntos fechados, sempre posso decidir se um elemento pertence ou não ao conjunto a partir de um traço que defina esse conjunto. Na lógica dos conjuntos abertos, isso já não é mais possível. Não há nenhum traço que defina um Todo e sou obrigado a considerar cada elemento um por um sem poder fechar o conjunto que defina um universal válido para todos. Daí o famoso aforismo lacaniano “A mulher não existe” – não existe um conjunto fechado que defina a mulher como universal – ou “A mulher é não-toda” – o que não quer dizer incompleta – ou também “deve-se contar as mulheres uma por uma”.

Nesse campo, mais além da lógica fálica, a função da letra, como concebida por Lacan, permite abordar e escrever o que não pode ser simbolizado pelo significante na parte fálica, masculina, da sexualidade. Essa parte da feminilidade que não passa pelo significante, que amiúde fica em silêncio para a própria mulher e que se faz presente, por outro lado, em muitos sintomas especialmente femininos, terá, portanto, uma conexão particular com a função da letra na medida em que a letra e a escrita bordejam, de maneira também especial, o impossível de dizer ou simbolizar.

É esse mundo entre a feminilidade, o impossível de dizer e a letra que encontramos no exemplar conto de Isak Dinesen intitulado “The Blank Page” (A página em branco), que resumimos nas páginas 13 e 14 deste livro. Nosso comentário pressupõe sua leitura, embora debulharemos aqui vários parágrafos que nos mostram uma identidade topológica – de lugar – entre a feminilidade e a letra.

Entre as funções que Lacan encontrará na letra, funções que a distinguem da simples representação gráfica à qual, às vezes, é reduzida, destacamos uma pouco evidente: a de desenhar “a borda do furo no saber”[6], isto é, a de emoldurar o que não se sabe no saber, o que falta e o torna sempre incompleto. Para colocá-lo em termos da lógica modal que Lacan usa, a função da letra é a de desenhar o que não cessa de não se escrever na cadeia significante. Função de corte, até recorte (de retall, dizemos em catalão) para a letra (lletra).

O que “The Blank Page” tornará manifesto, e o fará pondo em ato certo uso da letra, é que a própria feminilidade tem essa função de tornar presente o furo no saber sobre a sexualidade, de desenhá-lo, de cortá-lo e enquadrá-lo como uma página em branco, até que se torne uma letra, a própria letra do lugar da feminilidade.

Linguagem e sexualidade

Desse modo, a letra é feminina?

De fato, a narrativa de Isak Dinesen começa nos dizendo que a arte de contar histórias é uma tradição transmitida por mulheres, mesmo quando essas histórias são contadas por homens.

É um tipo de genealogia feminina da letra que devemos saber ler na lenda. Sublinhemos, por outro lado, a notável circunstância de que a contadora de histórias não sabe ler, embora saiba como fazer “ler” aos outros a página em branco. Primeiro indício de que a letra habita na palavra dita, como seu próprio suporte, e que podemos transmiti-la mais além de que saibamos ou não lê-la. Mais ainda, não será porque não sabemos como lê-la que transmitimos saber ao falar sem o saber? A instância da letra no inconsciente, para tomar o título do texto de Lacan, é a razão desse saber literal que a palavra transmite. A fidelidade à palavra dita indicada pela contadora de histórias segue essa razão. Fazia falta que alguém, finalmente uma mulher, escrevesse essa história, fosse de quem fosse que tivesse escutado essa lenda.

E se uma lenda deve ser “lida”, como manda a etimologia, não hesitaremos em situar no saber inconsciente a lógica que governa sua escrita, uma lógica na qual é preciso que algo cesse de não se escrever em sua leitura para que obtenha seu sentido. Nesse caso, o que cessa de não se escrever é, paradoxalmente, uma página em branco como letra da feminilidade.

O relato seguirá essas mesmas linhas estruturais, do oral ao escrito, do significante à letra, para produzir no leitor aquele efeito de sentido que é a novidade bem conhecida – permitam-nos o oximoro – da página em branco. Esse efeito poderá ser produzido sempre que o leitor for tão fiel à história e à palavra dita quanto o é a contadora de histórias. Se não chega a se tornar tão fiel quanto ela à palavra dita, esse novo sentido da página em branco e do seu silêncio se lhe tornará tão fugidio que só lhe parecerá pura vacuidade, sem saber ler nela a letra que se escreve, que cessa de não se escrever no discurso sobre a diferença sexual e o gozo feminino.

Para obter esse efeito de sentido, tão sutil e fundamental ao mesmo tempo, o relato põe em jogo em primeiro lugar uma série de dicotomias significantes como princípio de sua significação. É a oposição estrutural que constitui a cadeia significante – que escrevemos S1-S2 – na qual o objeto de seu referente se desloca de um significante a outro, sem chegar a obter uma representação única. Essa impossibilidade de representação única ficará inscrita, ainda que não representada, pela página em branco, tomada ela mesma como letra. Por outro lado, a narração fará com que a página em branco apareça como um lugar eminente da feminilidade, como alteridade e enigma tanto para os homens, quanto para as mulheres na construção de suas posições sexuadas. O lugar da feminilidade, impossível de construir-se como um universal, só poderá situar-se, mais além da lógica fálica, dicotômica, na particularidade do um por um.

A articulação, até mostrar sua própria identidade, entre a estrutura simbólica da linguagem e a pergunta sobre a diferença entre os sexos, levará a colocar a página em branco como referente último da linguagem, da arte de contar histórias, assim como da sexualidade em sua pergunta pela feminilidade. Da mesma forma, o referente último do relato “The Blank Page” será a página em branco como inerente à estrutura da linguagem e da sexualidade.

Esta é a operação que encontramos de maneira exemplar no conto “The Blank Page” ao fazer-se, ele mesmo, referente de sua própria enunciação e, assim, pôr em ato esse referente cada vez que alguém sabe lê-lo, melhor soletrá-lo, no relato. Já intuímos nesse referente o que, na lógica construída por Lacan, escrevemos com a letra a do objeto causa do desejo, objeto que, não é fútil lembrar já aqui, Lacan insistia em dizer que é uma letra.

Vejamos os passos que a narradora nos faz dar para que essa operação seja realizada, a cada vez que se ponha em ato na singularidade de sua leitura.

Um discurso sem palavras

Vamos primeiro indicar, sem querer esgotá-las, algumas das oposições significantes que o conto desdobra: o véu preto da contadora de histórias e o tecido de linho branco, a mancha vermelha e o branco do lençol, incluindo o branco e o preto do piso da galeria; o masculino e o feminino, a mancha e a pureza, a virgindade e a feminilidade, o falo e a castração, a maternidade e a feminilidade; mas também a palavra e a letra, a tradição oral e a escrita, a fidelidade e a traição, a voz e o silêncio, a letra e o branco, a escrita e a página em branco… Finalmente, a oposição topológica entre o interior e o exterior delimitará para nos o espaço onde se desdobram as outras oposições até encontrar seu sentido.

Mas esses pares de significantes, nos quais cada elemento é válido apenas por sua oposição ao outro, mostrarão sua assimetria à medida que o relato avance. A própria estrutura da narrativa faz com que essa simetria apareça forçando o lugar da enunciação até deslocar ao infinito da pergunta primeira. Quem fala em “The Blank Page”? Quem é o seu sujeito de enunciação?

Resposta do relato: a própria página em branco. Relato dentro do relato, narração de uma narração, quadro dentro do quadro, moldura dentro da moldura; na fuga para o infinito do sujeito da enunciação, encontramos um ponto de torção em que a oposição dos significantes desaparece e onde uma fratura se manifesta: o interior está conectado ao exterior e a página em branco se transforma em letra, em inscrição do lugar da feminilidade como sujeito de enunciação. É assim, nessa fratura, que o verdadeiro referente do conto aparece como impossível de dizer e de escrever, como a verdadeira “página em branco”.

Assim, a escrita da letra vem ao lugar do silêncio, do indizível, do que não tem representação na linguagem. Por outro lado, o branco da letra aparece como produto da palavra dita, como um elemento produzido e emoldurado por ela, uma palavra que, ao mesmo tempo, só se torna possível graças a esse branco. Acrescentaremos, pois, outra oposição, a que existe entre o “sileo”, o silêncio vazio, que nada diz, e o “taceo”, o silêncio pleno, que fala entre as palavras. É a voz desse silêncio que falará no final do conto na página em branco, como um produto da palavra levada até o limite do indizível, do impossível dizer onde o sujeito fica detido.

Neste ponto, abre-se o espaço de interseção entre a palavra dita e a letra da escrita. É nesse espaço de interseção, apenas abordável como indizível e impossível de escrever, onde cada dicotomia fracassa, se fratura, mas também onde cada termo obtém sua identidade de ser, mais além das oposições dicotômicas.

No que diz respeito à feminilidade, essa identidade será dada apenas caso a caso e já sem referência à sua oposição ao masculino ou à oposição fálico-castrado, diante da página em branco emoldurada no final do relato. O conto deixa essa identidade propriamente “em branco”, manifestando que não existe um significante que garanta a identificação de uma mulher a partir de outra. Da mesma forma, já nos anunciara que o princípio da tradição oral se transmite por uma voz que vai de mãe para filha, algo muito diferente de dizer que se transmite de mulher para mulher. É aqui que a contadora de histórias se faz uma com as mães, mas é para nos dizer que a identificação com a mãe nunca dirá o que é uma mulher. Precisamente, o que é transmitido de mãe para filha é a dimensão do significante fálico, do filho ou filha tomados como falo simbólico para a mãe. É do lado significante, simbólico, da feminilidade, o que se inscreve e transmite na história e na genealogia da palavra, o que da mulher passa pela palavra, pelo símbolo. Mas isso torna ainda mais evidente o que permanece em silêncio, em branco, da identidade feminina e que não pode ser resumido na figura da mãe.

Vamos enfatizar neste ponto um detalhe que poderíamos pensar ter sido cuidadosamente calculado pela narradora, se não fosse o fato de que não é necessário recorrer a qualquer cálculo para se referir ao saber do inconsciente, ou mesmo para pô-lo em ato.

Pode parecer um detalhe sem importância, mas o fato de que é dito no relato introdutório nos indica – como esses detalhes ditos de passagem em uma entrevista preliminar com um psicanalista, que mais tarde se mostram fundamentais – seu lugar na estrutura. A contadora de histórias conta muito bem seu lugar na genealogia das mulheres contadoras de histórias: “Foi a mãe de minha mãe (…) quem me ensinou a arte de relatar histórias. A mãe de sua mãe havia lhe ensinado, e ambas eram melhores narradoras do que eu. Mas isso não tem a mesma importância agora, porque, para as pessoas, elas e eu somos a mesma e me tratam com muito respeito, posto que conto histórias há duzentos anos”. É, portanto, da avó, da avó da avó, que essa arte é recebida, sempre da avó para a neta, e não de mãe para filha, através das gerações. E o que as mães fazem nessa história? Elas ficam “em branco” ou teremos que abrir uma nova sequência, de uma mãe qualquer à que será sua neta, para cobrir os vazíos dessa transmissão? Mas não, se devemos ser fiéis à história, devemos deixar esse lugar em branco entre as gerações, precisamente para que a transmissão do sentido da própria história, através delas, não se perca. Se o conto deixou a identidade da feminilidade “em branco”, foi para dizer que a identificação com a mãe nunca dirá dessa identidade, mas também para dizer que esse branco é fundamental para a transmissão dessa identidade.

Por outro lado, essa identidade transmitida “em branco” será sempre a melhor narradora, e é assim que os leitores saberão reconhecê-la – mesmo sem o saber – como a única e verdadeira narradora da história através das gerações, embora apenas se forem fiéis a ela. Ensinamento: você deve deter-se em cada página em branco para não ignorar a identidade de estrutura que se faz presente em sua topologia precisa e, assim, ser fiel a ela.

O tema da fidelidade voltará agora sob a pena de Isak Dinesen: pela força de ser fiel à linguagem, à palavra, ao saber dizer, o silêncio falará, falará o impossível de dizer, o indizível da “página em branco”, como letra em branco. Assim, pois, o conto não apenas explica a história dessa impossibilidade de dizer, mas também a coloca em ato, produz a fratura das dicotomias significantes, fazendo aquilo que diz de maneira performativa e, assim, se torna um paradigma do impossível de dizer da feminilidade, daquilo que, da mulher, não passa pelo significante fálico, do que não passa pela significação e só se conecta com a letra, com a escrita.

De fato, “The Blank Page” seria um conto para ser calado. Lembremos que a contadora de histórias nos avisa, desde o início, que o explica apenas abrindo uma exceção, como se o normal fosse deixar esse conto em silêncio, no estado do que não cessa de não se escrever. E que é apenas por essa exceção, de que somos testemunhas privilegiadas, que algo dessa história cessa de não se escrever no relato. Mas é, de fato, um relato que só poderia ser transmitido integralmente no e pelo silêncio do discurso, um discurso sem palavras.

(Vamos salientar, entre parênteses, que esse era precisamente o ideal manifestado por Jacques Lacan: um discurso sem palavras que escaparia ao equívoco, sempre traumático, do significante, e que pudesse ser transmitido integralmente. Daí seu recurso, nada retórico, como alguns acreditaram, ao matema, escritura cuja intenção é a de uma transmissão integral. A página em branco como matema?)

Seria melhor, então, calar? Seria a proposta final de um Wittgenstein em seu Tractatus: o que não se pode dizer, melhor calar. Mas, precisamente tanto a psicanálise quanto a literatura são duas maneiras de abordar o indizível, de falar e escrever a partir do que não se pode dizer, bem como do que não se pode escrever. “The Blank Page” designa o lugar de enunciação que não pode ser reduzido a nenhum enunciado e o designa sem poder significá-lo, sem poder incluí-lo no registro do significado.

Assim, o referente último do conto é o próprio conto como texto escrito, como o ato de contar e como idêntico à pergunta sobre a feminilidade. É uma operação aparentemente autorreferenciada porque, na realidade, quando se trata de linguagem, a autorreferência é tão impossível quanto a metalinguagem. O referente sempre foge, deslocado no mesmo registro da linguagem em que estamos inevitavelmente imersos. Como em uma banda de Moebius, o que na sincronia nos parecem dois registros ou dois níveis distintos – duas faces, mesmo que sejam da mesma banda – se revela na diacronia como um mesmo registro, uma mesma face. Somente assim podemos entender esse espelhamento de uma linguagem ou um discurso que poderia referir-se a si mesmo ou, como se assim o paradoxo fosse resolvido, de uma linguagem que se refere a outra tomada como objeto. Em vez de distinguir diferentes registros ou níveis, é mais consequente com a própria estrutura da linguagem situar aqui uma torção, como na própria banda de Moebius, onde o interior está conectado ao exterior, onde cada par de oposições indicadas atinge sua própria fratura, sua própria dissolução, para identificar-se com o mesmo intervalo que a constituiu.

No mesmo lugar dessa torção – mas não esqueçamos que em uma banda de Moebius esse lugar pode ser precisamente qualquer um em sua superfície –, devemos situar esse objeto a que escreve esse intervalo e que só pode ser percebido como um fuga permanente de sentido. A trama do texto – trama do texto e do tecido feito de letra e de linho – sempre tem esse ponto de fuga na história e na estrutura que coincide com seu referente último, a página em branco tomada como objeto.

Que o conto “The Blank Page” se constitua como o próprio referente da lenda, que se trata de transmitir e fazer ler, é algo que nos parece já colocado desde o início em um detalhe que, como sempre, apenas retroativamente pode obter sua significação. Essa significação virá mais adiante a partir da oposição subsequente entre o vermelho da mancha e o branco da página, mas é anunciada nesse princípio da seguinte maneira: “Queres um conto, gentil senhora, cavalheiro? Eu já contei muitas, muitas histórias, mil e uma mais, desde os tempos em que deixava que os rapazes me contassem a história da rosa vermelha…” A história da página em branco se converterá, na verdade, em uma, em mais uma, como um verdadeiro lugar de enunciação das mil outras histórias que se explicam, e também como referente e causa do próprio ato de contar histórias.

Contingências do amor

Como esta página em branco lê o discurso fálico, tanto de homens quanto de mulheres? Os veneráveis costumes das famílias, antigas e nobres, a que o relato se refere, são um bom exemplo: na manhã seguinte ao casamento de uma filha da casa, pendura-se o lençol da noite de núpcias numa varanda do palácio e se proclama solenemente Virginem eam tenemus (“Declaro que era virgem”). Esse lençol, por outro lado, não será mais lavado ou usado, permanecendo como um verdadeiro objeto de fetiche e como o signo de uma virgindade perdida. No Virginem eam tenemus significado pela mancha de sangue, temos um primeiro efeito de retroação da significação fálica governada pelo significante da castração, da falta: somente depois de perder a virgindade, pode-se declarar de uma mulher que ela era virgem. Apenas retroativamente a virgindade pode ser significada, quer dizer, apenas quando já foi perdida. Essa mulher que era virgem é precisamente o sujeito feminino abordado pelo lado do significante, é o que da feminilidade pode ser simbolizado pelo significante fálico; é o que pode e deve ser tornado público da feminilidade no discurso social sob suas várias máscaras; é também aquilo que forma o vínculo social para a mulher tomada como objeto de troca nas estruturas de parentesco.

A mancha de sangue torna-se, assim, um símbolo fálico da mulher no espaço social, mais um e não muito diferente daqueles que nossas sociedades, igualmente “tradicionais” neste ponto, geralmente oferecem. A partir desse símbolo tradicional que é sempre o símbolo fálico, a página em branco só pode ser lida como um rechaço da sexualidade ou como uma virgindade já perdida antes do ato: ou bem não houve relação sexual ou já havia acontecido antes como primeira vez. Mas, então, não teria sido necessário mascarar aquele lençol branco que seria lido, apenas, como uma simples ausência do símbolo. Por que enquadrar esse tecido branco e sem nome e colocá-lo na série da ilustre galeria? Se a página em branco se constitui em letra, é porque escreve algo que não poderia “dizer-se” nas outras manchas de sangue.

De fato, a feminilidade não pode ser reduzida à lógica fálica, ao jogo de oposição falo-castração em que o discurso tenta dar-lhe seu lugar. A oposição preto-branco, no piso da galeria, anuncia uma oposição que não poderá ser sustentada no espaço da representação dos sexos, da diferença sexual, da sexualidade entendida como diferença. Veremos que, finalmente, não há oposições simétricas nem recíprocas entre mancha e branco, entre mulher e virgem, como também não haverá oposição simétrica entre masculino e feminino. De fato, o Outro nunca é simétrico ao sujeito, existe uma alteridade irredutível que se fará presente de uma maneira particular na feminilidade, uma alteridade tanto para o homem quanto para a mulher, e que o conto manifesta de maneira paradigmática. Dito com os termos de Lacan dos anos cinquenta: a mulher se torna Outra para si mesma, assim como o é para o homem.[7]

Vamos agora olhar para a galeria de molduras com os retalhos de lençóis manchados de vermelho, cada uma com seu nome. Vamos escrever esta série assim:

 x       x’      x’‘      x’’‘    …   x ⁿ

b        c       d         e      …    n

Os nomes das mulheres (b, c, d, e… n) valem aqui como significantes da perda da virgindade, das manchas vermelhas que geram tantas significações e interpretações quanto se queira, sempre tão incompletas quanto múltiplas, para o sujeito que as lê. De qualquer forma, será uma série tão longa quanto possível, mas que sempre pode ser fechada em um conjunto, nomeado e numerado.

A significação da série – por exemplo, a significação de manter a virgindade como condição de escolha de uma mulher – é sustentada pela significação fálica, pela presença do símbolo da perda da virgindade que não deixa de se escrever em cada quadro. Aqui o símbolo fálico se torna necessário e não faria sentido emoldurar um espaço em branco.

Na mesma cadeia, mas também fora de série, aparece a página em branco, emoldurada e sem nome, como uma ruptura do discurso fálico significado no tabu da virgindade. E é conhecido o valor que o próprio Freud lhe deu na lógica da sexuação feminina. Mas algo mudou radicalmente neste ponto.

A série agora ficou aberta, mas não pelo fato de podermos sempre adicionar mais um elemento, verificando sua infinitude, mas pelo fato de que esta página em branco põe em suspenso, até anular, a significação prévia, universal, que definia a série e sua significação, colocando em ambas um interrogante de alguma forma definitivo. Ao mesmo tempo, enquadra o que tornou possível essa mesma série, o espaço da página em branco. Entre cada elemento da cadeia significante, entre b e c, entre c e d, entre d e e… existe agora o intervalo do a da página em branco que torna possível a própria cadeia significante, uma vez que a cadeia significante tornou possível sua inscrição. Ressignifica, assim, a cadeia de nomes b-c-d-e… e, ao mesmo tempo, só pode ser lida a partir deles como falta do signo de virgindade. É porque está em branco que agora adquire um sentido enigmático. Curiosamente, a página “virgem” é agora a que significa o enigma da feminilidade. É, de fato, o intervalo que permite ler as outras letras e que só pode ser situado a partir delas, na cadeia, mas também fora dela. É também o que não cessa de não se escrever na série anterior e que agora é um furo na própria cadeia, ao desenhar suas próprias bordas.

A página em branco se constitui, assim, no Outro por excelência, na diferença como alteridade irredutível. É também A mulher que não existe, A Sem Nome…[8]

Ressignifica todos os quadros anteriores, os das outras mulheres quadros, mas também os marcos da história como relato dentro do relato, e se constitui no próprio conto, tomado como seu referente.

Diante desse referente que condensa, como um ponto de fuga, todas as linhas do relato, as contadoras de histórias emudecem, tornam o silêncio presente, no ato de inserir a página em branco na série da cadeia significante, até o ponto em que se identificam, elas mesmas, com esse intervalo que o silêncio faz presente.

“Ora, que lealdade eterna e inabalável fez pendurar esse pedaço de pano ao lado dos outros! Diante dele, as contadoras de histórias devemos nos cobrir com o véu e guardar silêncio.” Mas é exatamente lá, também, onde o véu é levantado… para mostrar o nada da página em branco, como identidade de seu ser. Cada mulher fica, então, de pé diante da página em branco, lendo nesse quadro o próprio enigma em relação à feminilidade. Da mesma forma, cada homem permanecerá diante da pergunta do que ele é diante do gozo do Outro. Nesse ponto, a pergunta sobre a feminilidade toca o que não é simbolizável, o que não é socializável, o que não é intercambiável e que só pode cessar de não se escrever no branco da letra, no branco da página em branco.

Digamos, de nossa parte, que é no que cessa de não se escrever que a psicanálise de Jacques Lacan coloca, precisamente, a função do amor, do amor como a contingência de um encontro.

É a partir do encontro casual que algo que não cessava de não se escrever – forma lógica do impossível – pode cessar de não se escrever – forma da contingência – como discurso. E faz falta, é verdade, um ato de amor para poder ler a página em branco como o que cessa de não se escrever na série de símbolos da feminilidade.

O amor e a transferência, como suposição de um saber no inconsciente, na página em branco, se enodam aqui para tornar possível que ambos cessem de não se escrever nos discursos de nosso tempo. Que é, senão, o sujeito do relato que tentamos decifrar?

Essa é a pergunta que o conto põe em ato como uma resposta, escrevendo-a nos mesmos interstícios da história como uma lenda sua, fazendo letra do indecidível da página em branco.

Cabe ao leitor, agora e mais uma vez, dar sua resposta ao lê-la. Embora sempre possa argumentar que é apenas uma página em branco…[9]

Tradução: Ivone Maia de Mello (Associada ao IPB)
[1] O conto de Isak Dinesen “A página em branco”, trabalhado pelo autor neste artigo, pode ser encontrado em <http://www.filosofar.cat/index.php/pensaments-compartits/recull-literari/12-prosa-per-filosofar/19-isak-dinesen-la-pagina-en-blanco>.
[2] BASSOLS, M. Lecturas de la página en blanco: La letra y el objeto. Málaga: Miguel Gómez, 2011.
[3] Psicanalista em Barcelona. AME da Associação Mundial de Psicanálise, que a presidiu entre 2014 e 2018. Membro das seguintes escolas: ELP, ECF, EOL, NEL, NLS. Doutor pelo Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII, ensinante na Sección Clínica de Barcelona (Institut du Champ freudien).
[4] A elaboração mais precisa dessa relação se encontra em LACAN, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda. (1972-1973) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
[5] Para este tema, ver o excelente curso de MILLER, J.-A. De la naturaleza de los semblantes. Buenos Aires: Paidós, 2002.
[6] LACAN, J. Lituraterra. In: ___. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 15-25. “A borda do furo no saber, não é isso que ela [a letra] desenha?” (p. 18)
[7] LACAN, J. Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina. In: ___. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 734-748. “O homem serve aqui de conector para que a mulher se torne esse Outro para ela mesma, como o é para ele.” (p. 741)
[8] Evocamos aqui Josep Carner e a figura da feminilidade que faz aparecer como um personagem central em El Ben Cofat i l’Altre. Perpiñan: Proa, 1961.
[9] Em inglês, “The blank page”. O idioma inglês tem duas palavras: blank e white, para o que em espanhol equivale a branco. Blank significa sem escrita, sem impressão. White designa uma cor.