Elisa Alvarenga[2]
Agradeço o convite da Diretoria da EBP e da Comissão Organizadora do XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano para participar dessa atividade preparatória, dando continuidade à investigação sobre o que é o feminino infamiliar na psicanálise e mantendo viva a Escola nesses tempos difíceis.
Partirei da introdução por Freud dessa palavra-conceito e das ressonâncias aportadas por Lacan no seminário A angústia, momento privilegiado do ensino de Lacan, para pesquisarmos, por um lado, o que é o unheimlich, o infamiliar, e por outro, o que é o feminino, a partir da elaboração do objeto a como objeto da ordem do real. Se, anteriormente, Lacan localizava a libido – e, portanto, o gozo – no eixo do imaginário, e depois o objeto a passou a ser considerado um semblante, no caminho do simbólico ao real, nesse momento Lacan construiu um objeto como resíduo do simbólico.
Segundo Jacques-Alain Miller, Lacan escolheu a angústia como tema do seu décimo seminário por considerá-la uma via de acesso ao real[3] através do objeto pequeno a, que não é significante. A angústia transforma o gozo em objeto causa de desejo, resto de toda significantização e também da imaginarização possível no estádio do espelho. Lacan retoma então o esquema ótico para introduzir nele aquilo que não é especularizável, que não é visível e que não pode ser nomeado.
A angústia surge quando um mecanismo faz aparecer alguma coisa no lugar da castração, um quantum suplementar de estimulação pulsional como um objeto estranho[4], que permanece investido no corpo como um gozo autoerótico, uma exigência pulsional.
“A Unheimlichkeit aparece no lugar em que deveria estar o menos phi porque não existe imagem da falta. Quando aparece algo ali é porque a falta vem a faltar”[5], o que permite a Lacan dizer que a angústia não é sem objeto. Lacan pede então que leiamos o artigo de Freud sobre o unheimlich, pois assim como abordou o inconsciente através do Witz, abordará a angústia pela Unheimlichkeit.
A definição do unheimlich é ser heimlich: é o estranho familiar. No texto de Freud, é o assustador que remete ao que é velho conhecido, há muito familiar. O homem encontra sua casa no Outro, para além da imagem. A imagem especular pode transformar-se na imagem do duplo, com o que ela traz de estranheza radical, quando ele faz o sujeito aparecer como objeto, revelando sua não autonomia.
No conto de E.T.A. Hoffmann (1776-1822), como mostraram Gilson Iannini e Sérgio Laia, Lacan destaca que o sujeito salta de uma captação imaginária para outra – o advogado Coppelius, a quem atribui a morte do pai, o mercador de barômetros Coppola; a boneca Olímpia, espreitada pela janela através do binóculo vendido por Coppola; o olho de Nathanael complementando a imagem especular da boneca. O fio condutor vai de Coppelius, que quer arrebatar-lhe os olhos na infância, até o efeito de captura que Olímpia tem sobre os olhos do rapaz.
O desejo se revela como desejo do Outro, e o sujeito se torna objeto exilado de sua subjetividade. Se a fantasia serve para defender o sujeito neurótico da angústia, na psicose essa defesa fracassa. No seminário 10, sua manifestação mais perturbadora e ansiogênica é introduzida por Lacan pela experiência pessoal, autobiográfica, trazida por Maupassant em seu conto “Le Horla”.
Guy de Maupassant (1850-1893), grande leitor de Hoffmann e de Edgar A. Poe, lia e frequentava assiduamente Charcot na Salpêtrière. A loucura ocupa um lugar considerável em sua obra, e ele mesmo padecia de uma sífilis que teria invadido a região do cérebro um ano após a redação do conto.
Lacan aponta que a imagem especular torna-se a imagem estranha e invasiva do duplo no final da vida de Maupassant, quando ele começou a não mais se ver no espelho, ou passou a perceber uma espécie de fantasma, presença inquietante que ele sabia ter relação com ele.[6] É disso que se trata quando o objeto a retorna no real. O fenômeno de despersonalização começa pelo não reconhecimento da imagem especular e a alteração da imagem no espelho surge conforme a maneira como o significante se encarna ou não no corpo.
Quando o sujeito fica demasiadamente cativo da imagem especular para virar-se para o Outro que o porta, a relação dual pura o despoja de sua relação com o grande Outro. O sentimento de desapossamento do corpo observado na psicose, a especularização estranha, é o que se passa com o Horla, o fora-do-espaço. A loucura é para ele o espírito subterrâneo que cada um porta em si, Hors-là, de fora. Seu duplo é um ser invisível que bebe seu leite e folheia seu livro, anda atrás dele, ele se vira e está só. “Um ser estrangeiro em mim me espia, me penetra, me domina, quer por mim, eu obedeço.” Uma alucinação negativa é descrita quando o sente atrás de si, volta-se e vê o espelho vazio: “Seu corpo imperceptível havia devorado meu reflexo”[7].
No final das tentativas vãs de livrar-se dessa presença ameaçadora, o personagem fecha toda a casa e põe fogo nela, esquecendo-se dos criados que estavam lá. Mas… “sem dúvida, ele não está morto… então… vai ser preciso que eu me mate”[8]. Assim termina o conto, mostrando que a única maneira de livrar-se do duplo, exteriorização desse estranho que o habita, é se matar, como o faz também Nathanael no final de “O homem da areia”.
Contrariamente ao que acontece no seminário 4 – em que a fobia, ou o medo, tem um objeto e a angústia é sem objeto –, aqui a angústia não é sem objeto e o objeto do medo pode ser difícil de definir. É o que Lacan demonstra com “Pavores”, um belo conto de Anton Tchekhov, no qual o sentimento de estranheza aparece em três situações em que o personagem é tomado de pavor, sentimento de solidão, de ser olhado, e foge. Mas Lacan considera que o que está aí em questão é o medo de um perigo externo e não a angústia, quando há um perigo interno.[9]
O que nos olha?, pergunta Lacan. O branco do olho do cego, o olho inerte da coisa marinha que os pescadores fazem emergir[10], a lata de sardinha do seminário 11. Basta uma mancha para exercer a função de pinta, sinal que me olha. A pinta que causa o desejo pode tornar-se a pinta que inquieta o marido no conto “A marca de nascimento”, do escritor norte-americano Nathanael Hawthorne (1804-1864), em que o personagem quer extirpar a marca que o olha da face da esposa.
O que a forma especular e a fantasia têm de satisfatórias é mascarar a possibilidade do aparecimento do unheimlich. O olhar tende a fazer desconhecer, na relação com o Outro, que por trás do desejável há um desejante. Se pensam que estão lidando com o mais repousante dos desejáveis – a estátua divina –, o que há de mais unheimlich do que vê-la animar-se, mostrar-se desejante?
Mas essa intrusão do pequeno a pode ter também um valor erógeno em alguns exemplos oferecidos por Lacan nas mulheres. Então, também nesse seminário, Lacan nos apresenta a sexualidade feminina de uma maneira inédita, considerando a mulher como “mais verdadeira e mais real”[11] na sua relação com o Outro e o gozo, antes que ele formule o gozo feminino como não-todo nas fórmulas da sexuação.
Para falar da relação da mulher com o gozo e o desejo, Lacan traz a observação de uma de suas pacientes. Uma mulher, cujas insistências do marido eram um alicerce do casamento, percebeu que ele a largou por um bom tempo. Em vez de sentir um alívio de suas abordagens canhestras, ela disse: não importa que ele me deseje, desde que não deseje outras. E então falou de seu próprio estado, evidenciando que a tumescência não é privilégio do homem. Essa mulher que, segundo Lacan, tem uma sexualidade normal, quando se depara inesperadamente com um carro se apercebe da existência, inexplicável, de uma inchação vaginal. Reação ao surgimento de um objeto estranho à esfera sexual, esse estado de um certo estorvo cedia por si só. E ela emenda que todas as suas iniciativas eram dedicadas a Lacan, seu analista. Um objeto qualquer a obriga a invocá-lo como testemunha: seu olhar a ajuda a dar sentido a cada coisa.
Ela evoca ironicamente o encontro com o título de uma peça na juventude: “Viverei um grande amor”. Seu primeiro amor fora um estudante de quem fora separada, mas com quem se mantivera em correspondência. E tudo que lhe escrevia era um tecido de mentiras, criando o personagem que desejava ser aos olhos dele.
Na análise, ao inverso, ela se esforça para ser verdadeira. “O que ela queria era que meu olhar substituísse o seu”, diz Lacan. “Ela se basta, não lhe falta nada. A presença do objeto se encontra ali, de quebra”[12], porque não está ligada ao (-j).
Enquanto a angústia no homem se liga à possibilidade de não poder, o que interessa à mulher é o desejo do Outro. A paciente de Lacan faz questão do desejo enfermo do marido, e a impotência dele pode ser muito bem aceita, assim como seus deslizes técnicos.
Para a mulher, se consideramos que homem e mulher são duas raças, como propõe Jacques-Alain Miller, não biologicamente, mas no que concerne à relação inconsciente com o gozo, como dois modos de gozo[13], o desejo do Outro é o meio para que seu gozo tenha um objeto conveniente. Sua angústia se dá diante do desejo do Outro, que ela não sabe muito bem o que encobre.
Éric Laurent comenta que essa mulher quer o olhar de Lacan, ela quer ser o objeto agalmático que oferece ao olhar de seu analista. Laurent usa essa observação para apontar que Lacan rompe com a tradição porque o sexo é tomado, não na idealidade da diferença sexual, mas a partir do modo pelo qual o sexo é a-sexuado, em sua relação com o objeto a. Fazer amor não consiste em se encontrar como homem e como mulher, mas em extrair do corpo o objeto a, um gozo.
Para concluir, gostaria de apontar o lugar designado ao analista neste Seminário, e em especial às analistas mulheres, especialmente dispostas, como aponta Lacan, a encarnar o objeto para seus pacientes. Através do comentário crítico de um texto da psicanalista inglesa Lucia Tower sobre a contratransferência, Lacan mostra como ela passa momentos difíceis por se prestar à posição de objeto para seu paciente, suportando o seu sadismo fálico, sem, no entanto, afinal, identificar-se com esse objeto.
Nesse ponto, encontramos o que Romildo e Marcus trouxeram sobre a presença do analista incluída no conceito de inconsciente[14], como aquilo que perturba o sujeito e sua fantasia. O analista objeto, referente latente ao sujeito suposto saber, se tornará o analista trauma, que perturba as defesas do falasser.
Com efeito, Miller propõe que o analista só opera sob a condição de corresponder ele próprio à estrutura do unheimlich. “É preciso que ele passe o sentimento de estranheza”[15] evocando o inconsciente, transferencial ou real, e fazendo par com o sintoma. Não é à toa que Lacan, no seminário 10, associa o objeto a ao judeu, objeto de segregação. Tanto o analista quanto o judeu ocupam esse lugar, apontado por Lacan em “Nota italiana”, de rebotalho da humanidade[16].
Por isso, apostamos que o analista saberá, de alguma maneira, singular e êxtima, fazer-se presente nesses tempos inóspitos. A cada dia nos surpreendemos com novos objetos, que serão tanto mais unheimlich quanto fizerem ressoar alguns significantes que marcaram cada um de nós.