Cleyton Andrade
O que o leitor brasileiro tinha em mãos, até então, o auxiliava no entendimento de como podemos nos ver tomados por diferentes afetos e sentimentos, quando somos abordados por um estranho, e o quanto isso pode ser perturbador. Com a tradução de Das Unheimliche por O Infamiliar, esse mesmo leitor pode fazer um deslocamento e se lembrar das vezes em que encontrou um conhecido ou colega, de quem não se lembrou do nome, ou de onde o conhecia. O primeiro entendimento do leitor o ajudou a compreender fenômenos sociais e políticos que envolvem racismo, segregação etc., entendidos em função de uma reação de estranheza frente ao diferente, frente ao estranho ameaçador da integridade do Eu. A inquietação a que o infamiliar nos convoca é a da exigência de uma mudança de foco. O familiar é primário em relação ao infamiliar. A inquietação que o outro provoca é mais íntima do que se gostaria de admitir. O que abala minha certeza identitária não vem do exterior, do diferente.
Algumas questões interessam a Freud e à psicanálise diante de uma pergunta sobre o infamiliar. Há algo que, ao mobilizar o corpo e os afetos, constitui, também, qualidades. Nesse sentido, deve-se ressaltar que isso inclui não só a esfera da singularidade – como no afeto da angústia, por exemplo –, mas incide igualmente sobre os laços sociais, uma vez que os sentimentos são formas de compartilhamento social. Tanto num quanto noutro, resta, do lado do sujeito, uma precariedade na representação que se produzirá a partir daí.
O Infamiliar é um texto de 1919. Freud, sua família e boa parte da Europa ainda viviam os efeitos de uma Guerra Mundial. O sexual não havia deixado de ser uma questão central para a psicanálise, mas a morte passa a impor uma estética impossível de ignorar. Não é só a fantasia que pode colocar uma questão para a realidade. Nesse texto de 1919, é a própria realidade que é rediscutida. Os ideais, os sonhos iluministas, entre os quais aquele da própria ciência como veículo de uma vida melhor, caem por terra junto à própria concepção de mundo. O desenraizamento, bem como outras feridas expostas pela guerra, aparece como formas do desamparo, além de mostrar que a realidade é, ela mesma, uma das coisas que nos é mais infamiliar.
O leitor que se esforça para uma leitura coerente dessa infamiliaridade histórica, pessoal ou política, pode se confundir com o mesmo leitor que procura as imprecisões de Freud ao recontar o conto de E. T. A. Hoffmann. Ao procurarem a justa representação dos fenômenos e experiências, não encontrarão mais do que aquela que, talvez, seja a única saída possível: a infidelidade criativa, ou a transcriação, daquele que só pode ler se for autor, como se percorresse uma banda de Moebius.
Talvez a clínica nos mostre que, diante do infamiliar, a possibilidade de responder ao déficit representacional que ele implica se dê apenas através dessa torção de um leitor do opaco, do angustiante, do ilegível, quando se faz autor.
Freud afirmou algumas vezes que a ontogênese repete a filogênese. De modo análogo, nesse texto, diz que a história do sujeito e de suas narrativas repetem a história das línguas. Um saber da língua convive de perto com o insabido da língua. O ponto é que essa retranscrição – ou retranscriação – da língua para a narrativa, e dessa para a experiência subjetiva, pode vir sob a forma de uma negação, ou ainda, de uma dupla negação. O que é familiar na língua, no discurso, na experiência singular do afeto ou na partilha social do sentimento, pode reaparecer, não apenas negando sua familiaridade e afirmando uma infamiliaridade. Ela pode, também, e talvez, sobretudo para Freud, ocorrer sob as marcas da coabitação ou coexistência de ambos, sem que um elimine o outro. A familiaridade e a infamiliaridade convivendo juntas, sob uma boa dose de precariedade representacional de ambas. Como algo que não cessa de não traduzir. Afinal, há uma insistência na intraduzibilidade tanto do excedente dos afetos, quanto do sentimento, para uma gramática em que eles se inscrevam como traços positivos no psiquismo.
Esse texto de Freud nos convida a pensar temas clínicos, estéticos e políticos. Mas é ainda mais que isso. Ele nos convida a pensarmos clinicamente as estéticas da pulsão, dos impasses nos laços sociais e da impossibilidade da política nesses nossos dias e realidade, infamiliares.
Durante todo o texto, Freud articula o infamiliar ao retorno do recalcado. Em outras palavras, aquilo que foi familiar e que deveria permanecer escondido, mas volta a manifestar-se, o faz como um infamiliar. A angústia de castração no conto de Hoffmann é substituída pelo medo de perder os olhos pelas mãos do Homem de Areia. Tal como o horror que Ofélia nutria pelo Fauno, inquilino do lugar angustiante que originalmente caberia ao novo padrasto, oficial do exército de Franco numa Espanha fascista, em O labirinto do Fauno.
Mas, se por um lado, Freud insiste nesta relação com o recalque e o retorno do recalcado, ele abre espaço para pensarmos, clinicamente, uma estética da pulsão de morte. Nos modos de repetição, não mais restritiva à gramática do recalque, mas sim de uma compulsão à repetição, vemos uma estética performativa passível de ser capturada na clínica, nos laços sociais e na política. Ou seja, a angústia tem um núcleo estético e é isso que a diferencia do infamiliar. Há um modo, uma forma, em que o fenômeno ou a experiência do infamiliar se faz presente no núcleo da angústia. Em outras palavras, no interior do angustiante nos deparamos com a estética do infamiliar, como predicados e qualidades que, por não se inscrevem positivamente, acabam por se fazerem indistintos de seus antônimos. O familiar e o infamiliar numa relação de curiosa de ambivalência, sem que um elimine o outro e sem que um possa ser determinante em relação ao outro. Indeterminação mútua.
Seria possível pensar com Lacan e, no próprio texto de Freud, o infamiliar não estritamente ligado ao retorno do recalcado? Uma primeira interrogação viria justamente dessa função do infamiliar, no lugar daquilo que antes era familiar. A inquietante infamiliaridade poderia ter a função de ocupar o lugar das formações do inconsciente, e como tal, recobrir a ação do recalque? Ou, podemos dizer que a familiaridade, não eliminada, depõe contra o sucesso do recalque?
Do ponto de vista do excedente pulsional, que não poderá ser desconsiderado com o conceito de pulsão de morte, o infamiliar não poderia ser pensado para além do Édipo e do retorno do recalcado? Sendo assim, não poderia ser pensado como a própria infamiliaridade do gozo? Nesse sentido, a estética do infamiliar poderia ser um modo de pensar clinicamente os modos da emergência do real sem sentido?
É justamente ao levarmos em conta a estética, é que, ao final do texto, podemos destacar a possibilidade de um pensamento do infamiliar que escape do regime do recalcamento, como a presença do não-pensamento inapreensível pelo pensamento. Os efeitos da emergência da pulsão de morte como potência disruptiva, da emergência do real. Enfim, dos efeitos da experiência infamiliar que qualquer homem, mulher ou transgênero (para aqueles que assim preferem se nomear) vivencia diante do encontro com o feminino.
Há aí uma recusa da linguagem a esse furo da própria linguagem. E uma das coisas que Das Unheimliche nos mostra é que essa tentativa de apagamento deixa rastros na língua, bem como nos discursos, na narrativa e na experiência.
O infamiliar é uma palavra? Ou um conceito? Ou ainda ambas, uma palavra e um conceito? Ou quem sabe, uma palavra-conceito? Se o for, talvez possa nos ajudar a entender a infamiliaridade que cada uma tem diante do feminino; não importa o lado que ocupe na fórmula da sexuação.
Cleyton Andrade*