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Alana Tedesco**

Esse texto poderia ser uma interpretação da colagem que acompanha o texto. Contudo, se disso partisse, não estaria sendo generoso ao convite para o esforço de transmitir aqui algo do indizível que está contido na arte da colagem. Foge ao escopo deste texto entrar em uma análise profunda sobre métodos de interpretação de materiais estéticos. É importante, entretanto, ter em vista uma diferença significativa, ao menos para Psicanálise, entre um escrito sobre determinada arte cujo engajamento (neurótico) é em reduzir o material estético à representação, e um escrito que, advertido da irredutibilidade da arte a uma conceitualização, engaja-se nos efeitos do objeto estético, justamente, “em seu estatuto irredutível à representação”[1]. Trataria-se, portanto, de forjar um encontro com esse tipo de “objeto” estético. Encontro parecido com aquele relatado por Maria Gabriela Llansol, poeta portuguesa, em seu diário, sobre certa madrugada em que aproximou-se “da certeza de que o texto era um ser”[2]. Assim, nesse segundo tipo de escrito, o indizível do atravessamento com a arte pode se deixar capturar.

Podemos pensar essa diferença também com Barthes. Ao diferenciar um texto a ser lido na posição de “sermos, exclusivamente, consumidores do texto como produto do outro ao recebermos, de bom grado, a mensagem que ele nos transmite”[3], de um texto que inserem o leitor “não mais como um mero consumidor, mas como um produto do texto, ao convidá-lo à reescrita do lido”[4].

Em outras palavras, é também neste segundo tipo de escrito que podemos testemunhar os efeitos da potência da arte enquanto um acontecimento próximo a uma “salvação pelos dejetos”, usando uma expressão de J-A Miller. Não no sentido religioso, sequer romântico; sabemos que a arte não salva o mundo. “Mas pode salvar o minuto”, nos sussurra Matilde Campilho, outra poeta portuguesa.

A arte da colagem é um trabalho sobre dejetos, por excelência. É com o surrealismo que a arte coloca os dejetos a nu, nos lembra Miller. Em “Sete observações sobre a criação”, a primeira observação feita por ele é a de que a arte, para Lacan, é da ordem do ininterpretável, porque já é uma interpretação. Partindo dessa premissa, Marie-Helene Brousse afirma, considerando a arte como produção e não como formação do inconsciente, que isso implica colocá-la no registro da função de objeto, o qual não é da ordem do decifrável[5].

Por tudo isso, esse texto não pretende interpretar a colagem que o acompanha, sequer também a colagem serve de ilustração a alguma mensagem do texto. A aposta é que a colagem, em sua função de objeto causa de desejo, forme um litoral com a imprevisibilidade dessa escrita. Os efeitos desse litoral, por sua vez, terão a chance de cessar de não se escrever, no caso da sorte de um encontro desejante com quem os lê, lançando o leitor a uma escrita. Ou melhor, convidando-o a, nesse litoral, molhar os pés.

Ou seja, isso também não é uma colagem. A colagem fica por conta do leitor.

* Texto escrito a partir do produto de um Cartel, de título “Letra” que, mesmo após sua dissolução, continuar a causar outras escritas.
** Psicanalista em Florianópolis (SC).

 


Referências:
[1] Andrade, Cleyton. Conferência de abertura do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Literatura, EBP Seção Sul. Agosto 2020.
[2]  Llansol, Maria Gabriela. Um Falcão no Punho: Diário I. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, 45.
[3] Salum, L. Fragmentos: Sobre o que se escreve de uma psicanálise. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo (USP). 2015.
[4] Ibidem.
[5] Brousse, M-H. Una sublimación a riesgo del psicoanálisis. Tradução: Mabel Bialer.