Cleyton Andrade[2]
Boa noite a todos e a todas. Gostaria de começar agradecendo à Comissão Organizadora e à Diretoria pelo convite para participar desta atividade. Quero dizer também que este trabalho não tem qualquer originalidade, sendo o resultado da contração e compressão de uma série de contribuições e discussões com os colegas, seja nas atividades preparatórias anteriores, nos trabalhos com os colegas da Seção Nordeste, no cartel, bem como com os colegas da Comissão Científica.
Desde minha entrada na Comissão Científica, três questões me acompanham. Todas acerca do texto de Freud. Mas, em função do tempo, irei me ater a apenas uma: a dimensão estética. Vale frisar, ainda, que minhas reflexões terão como foco apenas o texto “O infamiliar”.
De modo geral, num dos recortes possíveis, Freud inicia por algumas considerações sobre o interesse estético a respeito do belo, do atraente e grandioso, deixando de fora aquilo que produz contradição, que é repugnante e penoso, e já apresentando Jentsch, que tem um estudo sobre o infamiliar.[3] Vale dizer rapidamente que a posição de Freud frente às considerações deste autor não são uniformes nem lineares ao longo do texto: faz críticas, se afasta, mas retorna a ele com alguns ajustes. Por exemplo, discorda abertamente de uma posição acerca do infamiliar abordado por Jentsch: para este, o infamiliar introduz algo novo, uma novidade. Ou seja, o infamiliar seria, para ele, aquilo do qual nada se sabe. Há uma relação de oposição entre saber e infamiliar; quanto mais se sabe, quanto mais conhece, menos infamiliar. E o inverso: é no campo do não-saber, do estranho, do não conhecido, que se situa o infamiliar. A recusa e discordância de Freud a respeito dessa composição e distribuição entre saber e não-saber, conhecimento e não conhecimento, numa relação recíproca de externalidade, mostram que o conceito de infamiliar em Freud não pode ser o “estranho”. Ele o é para Jentsch, não para Freud. A distribuição das relações entre saber e não-saber no conceito de infamiliar aponta para uma convivência, uma coexistência. Ele não é, em hipótese alguma, o estranho: é o mesmo, o íntimo, o familiar que retorna num lugar em que sua familiaridade de desfaz por um momento. O impasse não é com o terror do diferente e do novo, mas sim com a transmutação do íntimo em aterrorizante.
A investigação dos casos particulares atingiu um alcance de universalidade que posteriormente encontrou confirmação por meio do testemunho do uso da linguagem. Ou seja, há uma enormidade de exemplos, de casos, a ponto de haver efeitos no uso da linguagem. Os casos precedem o uso da língua. Mas Freud opta no texto por inverter a ordem. Decide falar dos rastros do infamiliar na língua, na combinação de opostos nos sentidos antitéticos das palavras primitivas, para depois falar dos casos. Por quê? Seria mero recurso de montagem de texto? Seria uma preferência pessoal de Freud ou alguma comodidade? Talvez sim, talvez não. Mas me parece que há aí um procedimento fundamental: ele estabelece as bases e as coordenadas do que irá estruturar sobre o conceito de infamiliar, bem como as condições de possibilidade para o infamiliar. Ele define um campo, define um domínio. Não apenas o campo da linguagem, mas o domínio estético. Em outras palavras, o recurso à demonstração do sentido antitético das palavras, o jogo combinatório de convivência de opostos – digno de um uso lacaniano da lógica no seminário 19, por exemplo, quando uma afirmação e uma negação não se excluem, mas existem simultaneamente –, é aqui em Freud apresentado em termos de uma estética que admite a coexistência do saber e do não-saber, do conhecimento e do não-conhecimento, da positividade e da negatividade, do familiar e do infamiliar.
Interrompo a sequência do texto para chamar a atenção para a crítica feita por Freud sobre o desinteresse da estética pelo que é aterrorizante, que produz horror etc.[4] Ele parece fazer aí muito mais uma crítica à teoria da Beleza em Aristóteles do que, de fato, à estética. A Poética de Aristóteles (384-322 a.C.) é um texto sobre a Beleza, mais especificamente sobre a tragédia; um método normativo, prescritivo e descritivo para a composição mimética.[5] A cosmologia em jogo é, grosso modo, a de um mundo que veio do caos e passou a ser regido pela harmonia. Há uma ruptura entre caos e harmonia, uma relação de exterioridade, mesmo que ainda haja restos e vestígios de desordem na ordem. Há um processo de extração do caos para a promoção da harmonia. O poeta trágico, procura recriar um universo em que a realidade reconheça a si própria, ainda que transfigurada.
A Poética é uma técnica que parte de distinções claras e de relações de externalidade e exterioridade: distinções entre logos e alogos, ou logos e pathos, como condição de partilha entre conhecimento da técnica e desconhecimento da morte. A técnica que permite viver implica um desconhecimento da morte como condição para torná-la suportável. Talvez o modelo poético, a Poética aristotélica como modelo estético de separação e passagem de um não-saber para um saber, sirva ao início da clínica e elaborações freudianas, juntamente com o efeito catártico, tal como o modelo do infamiliar, uma outra estética, um outro modo de pensamento estético, sirva a ele num momento em que está às voltas com os efeitos da guerra, com a presença irrecusável da morte como negatividade e às vésperas do conceito de pulsão de morte e do além do princípio do prazer.
O texto de Freud traz dois tipos de “infamiliar”: um que decorre das vivências, das experiências, e outro que vem da literatura. Numa leitura rápida, só o segundo diria respeito às discussões estéticas. Mas me parece, insisto, que a estética enquanto um modo de racionalidade necessária para pensar o infamiliar está presente em todo o texto.
O primeiro tipo de infamiliar, o das vivências/experiências, se divide em dois fundamentos: as crenças animistas e os complexos infantis. Ambos seriam objeto do recalque. As crenças animistas, o pensamento animista (que é a atribuição de alma a todos os seres e objetos do mundo) é recalcado em nome da razão e do processo civilizatório. Primeira observação neste ponto é que o animismo não se reduz à definição do modo ou do regime de pensamento do dito “selvagem”, mas, principalmente, à presença desse regime de pensamento mesmo no homem civilizado. O neurótico é, ao mesmo tempo, infantil e selvagem. Uma criança convive e coexiste no adulto, tal como o selvagem no civilizado. Trata-se, novamente, de uma dimensão estética que admite opostos sem exclusão mútua. Selvagem e civilizado não como marcadores da distinção entre natureza e cultura, mas como outra gramática para o copertencimento entre positividade e negatividade.
O recalcamento aqui tem uma aplicação ampliada, dada pelo próprio Freud. Portanto, parece-me que a exigência de articulação do infamiliar com o retorno do recalcado diz menos, ou quase nada, da neurose enquanto estrutura clínica diferente da psicose e da foraclusão, e muito mais de uma gramática freudiana do retorno de algo que não é novo. Da aparição de algo que não é estranho. Do retorno daquilo que já está lá, daquilo que é familiar, já conhecido, mas que aparece abalando a estabilidade conferida à realidade. A fantasia já sustenta a realidade de modo, digamos, falseada. Ela dá o testemunho de que não é problema uma realidade deformada, posto que a realidade psíquica é preponderante em relação à realidade externa. Em termos do texto “Totem e tabu”, e do que é chamado de “animismo”, há um feitiço e um contrafeitiço.[6] O primeiro institui uma realidade, tal como daquele sujeito que, habitado pelo desejo de morte, se considera assassino mesmo sendo cordial. O problema não é esse feitiço que muda sua realidade, na qual o sujeito se vê um assassino sem ser. Afinal, há um contrafeitiço que garante que essa “onipotência do pensamento” se sustenta na condição de uma rasura, um apagamento. O problema se dá se o contrafeitiço falha e o ser assassino, tão familiar embora apagado, reaparece como contingência de tal modo que a tela da fantasia vacile ao sustentar a realidade. O infamiliar parece ser a irrupção, na realidade, daquilo que só poderia ser na fantasia. Por isso, uma pandemia pode produzir um efeito de infamiliar, sobretudo quando estamos imersos em filmes, jogos e narrativas pandêmicas. Se ela aparece, não é o novo, não é novo normal. É o infamiliar no contrapé do contrafeitiço.
Um detalhe: os complexos infantis com suas implicações acerca da sexualidade são tratados muito brevemente. Em contrapartida, o pensamento animista com suas relações com a morte é amplamente comentado.
No infamiliar das experiências, há a prova de realidade não só como fundamental, mas também como condição, uma vez que é nesse ponto do já conhecido, do que já é ou foi familiar, que reaparece algo num ponto onde já deveria ter sido superado. Tal com o pensamento anímico que já deveria ter sido superado, mas ainda assim deixa seus traços.
No outro tipo de infamiliar, na literatura, não se aplica a prova de realidade, por motivos óbvios. A ficção tem como presunção a sua legitimação. Nesse sentido, o infamiliar na literatura parece ser uma contradição às elaborações freudianas. Além de colocar em suspensão a prova de realidade, o faz, também, em relação ao antagonismo entre o que foi superado e seu retorno.
Mais uma vez, Freud recorre àquilo que chamou de animismo. O escritor abandona o fundamento da realidade porque se abre ao pensamento anímico. No entanto, isso não é suficiente para o sentimento de infamiliar. Ou seja, na experiência, a aparição da negatividade do pensamento animista na positividade do pensamento racional pode produzir o sentimento de infamiliar, mas na literatura não. Afinal, os seres fantásticos, heróis, faunos etc. não produzem esse efeito. Se acompanhamos o escritor no seu mundo fantástico, não há vacilação nem conflito de julgamento.
O que seria infamiliar na vida cotidiana não o é na literatura por escassez de condições. Do mesmo modo em que nesta, por outro lado, há uma enormidade de possibilidades para a produção do infamiliar que não são possíveis na experiência.
O escritor nos conduz a um mundo, mas pode mudar de direção. Pode propor que o sigamos por um caminho e com isso, sob nosso apoio e cumplicidade, construir uma realidade seja ela semelhante a uma realidade externa, material, ou a uma realidade fantástica. Seja ela qual for, seremos seus cúmplices. Aqui, Freud bifurca o efeito de infamiliar no texto e em relação a ele. Ou seja, no caso do conto de Hoffmann, há um infamiliar que concerne a Nathanael, uma personagem, e outro efeito sobre nós, os leitores.
No caso do primeiro, o efeito do infamiliar decorre do Homem da Areia. É ele com quem Nathanael foi familiarizado através das narrativas da babá. O pensamento animista próprio a essa narrativa reaparece primeiro em Coppelius e depois em Coppola. Freud destaca como o Homem da Areia é aquele que perturba o encontro amoroso, sua emergência sempre produz rupturas, separa o protagonista de quem ama, perturba sua realidade.
No caso do leitor, Freud antecipa sua interpretação no momento em que descreve o final do conto: ele diz que o Homem da Areia desaparece em meio à multidão, sendo que Hoffmann diz que é Coppelius quem desaparece.[7] Hoffmann conduz o conto como se o critério de realidade que o leitor tivesse que adotar fosse o da realidade material, cotidiana. Por isso, facilmente se crê que estamos diante de uma psicose, da loucura algumas vezes desencadeada a partir de um encontro. É essa a realidade com a qual consentimos. Entretanto, o escritor, resumido por Freud ao chamar Coppelius de Homem da Areia, introduz o fantástico, o animismo, onde nos apoiávamos na realidade material. Se o conto fosse desde o início um relato fantástico, não haveria efeito de infamiliar. Hoffmann fala do fantástico nos fazendo crer que falava da realidade. É esse giro que exige um reajuste do nosso julgamento quanto ao que produz o infamiliar na literatura. Ou como no filme As aventuras de Pi, em que somos conduzidos a pensar um mundo fantástico e nos surpreendemos com o drama real do protagonista. Ou quando nos ocupamos com o fauno em O labirinto do fauno, com seu mundo fantástico em nada infamiliar, para um reajuste de julgamento quando nos deparamos com a violência fascista de um oficial.
Não há nenhum problema com a irrealidade. Nem com a realidade distorcida, transfigurada. O infamiliar não pode ser encontrado aí. Está no ponto em que uma realidade é invadida por outra que já estava lá. Naquilo que já era familiar, conhecido, e que um julgamento o depositou num sótão qualquer. Como aquela foto impressa, aquele brinquedo de criança, ou carta de amor guardada em algum lugar até ser esquecida, e que foi reencontrada por contingência, não com júbilo, mas com desconcerto, ou desassossego.