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Tunga/Vê-nus blog.bnsir.com.br

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Ana Lucia Lutterbach Holck

O que quer uma mulher? Freud adianta que só há libido masculina. O que quer dizer isto? – senão que um campo, que nem por isso é alguma coisa, se acha assim ignorado. Esse campo é o de seres que assumem o estatuto da mulher – se é que esse ser assume o que quer que seja por sua conta. Além disso, é impropriamente que a chamamos a mulher, pois, a partir do momento em que ela se enuncia pelo nãotodo, não pode se escrever. Aqui o artigo «a» só existe barrado. Esse A/  tem relação, com o significante A enquanto barrado[1].

A mulher não existe.

Por que Antígona não seguiu os conselhos de Ismênia? Por que Diadorim não revelou seu segredo a Riobaldo? Por que Anna Karenina se jogou debaixo de um trem e Virgínia Woolf no rio? Por que Duras escreve? Por que Lol se calou?

Porque não há A.

De um lado da humanidade estão aqueles que existem, sabem fazer e fazem saber. Sabem fazer com o saber indústrias, pontes, coador e fraldas descartáveis, guerras, bebês de proveta, remédios, bombas, carros, tortura, fortuna, doenças, fast food e charuto. E de outro estão as que não existem e só fazem com o impossível, desafiando a Deus: desespero, suicídio, traição, paixão, loucura, ferocidade, ficção, poesia, êxtase. Por quê?

Porque não há A.

O que faziam as mulheres na Grécia antiga? Sexo e amor eram assuntos importantes e, junto com a verdade e a guerra, eram para serem tratados entre os homens. Parece que também não estavam interessados em educá-las, e muito menos tê-las como educadoras. A educação era dos homens para os homens. Para os assuntos domésticos tinham os escravos. Estavam excluídas também da política. Parece que os antigos deixaram as mulheres à parte. Devia ser uma espécie de campo sagrado, melhor não mexer.

O que será que as mulheres faziam quando estavam entregues a si mesmas, entre si? Elas não fazem conjunto. Seria a solidão, como nos indica Lacan?[2] A mulher seria parceira de sua solidão.

Chico Buarque acha que as mulheres de Atenas teciam esperando os seus maridos. Elas teciam e esperavam. Esperavam a guerra para tecer. Homero com Penélope, também. Freud achava que tecer era o melhor que as mulheres podiam fazer. Era isso que a mulheres faziam, teciam. Os homens iam para a guerra e as mulheres esperavam. Esperavam, tecendo ter paz, em paz.

É isso, as mulheres entregues a si mesmas, tecem ou insistem até o limite da morte em enterrar seus irmãos.

Tecer. É isso o que as mulheres fariam se fossem entregues à sua solidão. As mulheres gostam de tecer. Tecer fios e ficções.

Só que nunca inventaram uma tecelagem para enviar as mulheres quando elas começam a não querer comer, ficam paralíticas, mudas, apaixonadas ou cegas.

Na época de Freud, elas eram mandadas para as clínicas de repouso. Achavam que elas precisavam de repouso, que estavam cansadas. Cansadas de quê? Seria um cansaço de tentar ser homem? Ou tentar fazer existir a mulher? Ou eram os homens que ficavam cansados de vê-las, assim, tão nãotodas. Lá elas podiam tecer na solidão.

Quando será que inventaram que a mulher devia fazer parceria com algo mais que a solidão? Quando será que inventaram que a mulher tinha que existir, ser, mãe, esposa, dona de casa? É um desastre porque elas não sabem ser homem direito. E os homens reclamam.

Não sei quando foi que inventaram, mas a Segunda Guerra foi um grande salto neste sentido. Será que foi o mercado e as feministas que inventaram que a mulher tinha que existir?

Será que inventaram que a mulher tinha que fazer coisa de homem na mesma época que inventaram as indústrias de assassinato em massa? “Essa nova face da morte organizada, racionalizada, descoberta na Alemanha desconcerta antes que indigna. […] acaba de assassinar onze milhões de seres humanos da mesma maneira metódica, perfeita, que uma indústria de estado”[3].

É isso. Foi o mercado e a burocracia que decretaram, ao mesmo tempo, a morte de Deus, a indústria da morte organizada e racionalizada; a construção de um muro e a Guerra Fria e a existência da mulher e o amuro.

Foi preciso Lacan dizer que a mulher não existia justamente porque insistiam em sua existência.

Sobrevivemos à morte de Deus, à guerra e ao muro mas se a mulher tomar existência será o fim do mundo, o fim do buraco sobre o qual se pode tecer. O fim do nãotodo. Seria como propor o fim do zero.

Mas o que aconteceria se fossem deixadas em sua solidão, como as mulheres de Atenas e de Tebas? Elas iriam tecer, tecer palavras e, como são nãotodas, iriam escrever, escrever até chegar a escrever sem gramática, até chegar à não-escritura: “Haverá uma escritura do não-escrito. Um dia isso acontecerá. Uma escritura curta, sem gramática, uma escritura só de palavras. De palavras sem gramática de sustentação. Desgarradas. Escrever. E deixar em seguida”[4].

E aí os homens poderiam ler o jornal, assistir ao jogo, trepar, fazer negócios, viadutos e guerras, em paz.

Claro que essa separação não diz respeito à anatomia e cada um se postaria, como já acontece, do lado que pudesse.

A sexualidade se manteria, mas sem almejar a relação. Para haver sexo não é preciso que haja relação. Só o amor faz relação. Seria o fim do amor, só restaria a poesia.

Ana Lucia Lutterbach Holck é psicanalista em Rio de Janeiro. Membro da AMP e da EBP. AE (2007-2010). Coordena o Núcleo de pesquisa Práticas da letra do ICP (RJ).
O XXIII Encontro Brasileiro do Campo freudiano agradece à autora a disponibilização do texto para divulgação no Boletim Infamiliar.

[1] Lacan, J. O Seminário, Livro 20: Mais, ainda. 1972-73/1982, Rio: JZE, 1972-73/1982, p. 108.
[2] LACAN, J. O aturdito. In: _____. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003[1973], p. 467.
[3] Duras, M. La Douleur. Paris: Gallimard, 1985, p. 65.
[4] Duras, M. Écrire. Paris: Gallimard, 2003,  p. 86.